"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Empresas e violência no campo

Paulo Vannuchi 19 Dez 2019, 10:26 violência-no-campo-elvis-marques-cpt-nacional.jpg

Desde seu nascimento, em fevereiro deste ano, a Comissão Arns busca distribuir entre seus membros as chamadas Relatorias Temáticas. Adota, assim, uma prática consolidada nos organismos internacionais de direitos humanos. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha é relatora para Povos Indígenas, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira para Direitos Humanos e Empresas, a jornalista Laura Greenhalgh para os direitos LGBTI. Serão dez essas Relatorias.

No mês passado, em Belém do Pará, a conferência regional que o Instituto Ethos organiza todo ano em quatro áreas do país abriu suas portas para um painel sobre Trabalho Escravo e Violência no Campo. Foi a terceira atividade conjunta entre aquele instituto e nossa Comissão. A parceria seguirá adiante em 2020, reforçando os compromissos empresariais de responsabilidade social e proteção dos direitos humanos.

No Ethos reúne-se regularmente uma coalizão de empresas sensíveis a essa agenda, inspiradas no impulso que as Nações Unidas deram ao tema desde a aprovação, em 2011, dos princípios reitores formulados pelo especialista John Ruggie, obrigando cada empresa a proteger e a respeitar os direitos humanos, promovendo reparações quando violados. A quase totalidade dos membros da ONU aderiu formalmente a esses princípios, em um total de 193.

No Brasil, em 2008, aconteceu em São Paulo um inédito Encontro de Presidentes, mediante parceria entre o Instituto Ethos e a Presidência da República. Lado a lado, o presidente Lula e o governador José Serra receberam 500 presidentes das maiores empresas do país (ou diretores representantes) para um dia inteiro de diálogo, sensibilizando as corporações na mesma direção.

De manhã, no ato de abertura, ocupavam a primeira fileira das poltronas os presidentes dos bancos, das montadoras, das empreiteiras, das teles, dos supermercados, da Vale e da Petrobrás. À tarde, painéis simultâneos, sempre compostos por um ministro, especialistas temáticos e executivos empresariais, abordaram temas como combate ao racismo, direitos da mulher, pessoas com deficiência e enfrentamento do trabalho escravo.

Saudade daquele Brasil, onde adversários políticos como Lula e Serra se uniam para uma atuação conjunta em defesa da democracia, do Estado de Direito e das normas inscritas na Constituição de 1988.

Nos anos seguintes, foram dados alguns passos – hoje interrompidos – com vistas à construção de um Plano Nacional de Ação Direitos Humanos e Empresas, que já avançou em vários países europeus e pelo menos no México, Colômbia e Chile, aqui nas Américas.

No último dia 19 de novembro, Bresser-Pereira coordenou, pela Comissão Arns, um workshop conjunto com o Ethos, para analisar a grave repetição de violências, torturas e atos de racismo em supermercados e shoppings. É importante ler, aqui neste mesmo blog, a Nota Pública # 11 – Prevenção da Violência pela Segurança Privada, bem como o dossiê anexo, contendo os episódios mais recentes denunciados pela imprensa.

A NP #11 valoriza o projeto que tramita no Senado, sob relatoria de Randolfe Rodrigues, como chance para obrigar as empresas terceirizadas de vigilância, quase sempre as responsáveis diretas pela violência, a seguir parâmetros adequados de respeito aos direitos humanos na seleção e no treinamento de seus funcionários. Mas sabendo-se que a responsabilidade é também dos supermercados e bancos contratantes.

Em 28 de novembro, em Belém, o painel proposto pela Comissão Arns na conferência regional do Ethos focalizou o engajamento das empresas no combate ao trabalho escravo e outras formas de violência no campo. Povos indígenas e a floresta Amazônica vêm sendo alvo preferencial das agressões crescentes em 2019, provocando impacto nacional e planetário, pelas imagens de destruição captadas do alto dos satélites de um planeta que permanece sendo redondo.

Entre os expositores estava presente Juliana Fonteles, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Pará, filha do advogado Paulo Fonteles, que foi preso político quando estudante, torturado no DOI-Codi de Brasília em 1971, e assassinado 16 anos depois pela sua atuação como advogado de posseiros e sindicatos de trabalhadores rurais na região de Marabá, Conceição do Araguaia e Rio Maria.

Marina Ferro, gerente-executiva de Práticas Empresárias e Políticas Públicas do Instituto Ethos, resumiu o compromisso de décadas da instituição com as iniciativas de enfrentamento do trabalho escravo. Dois professores da Universidade Federal do Pará, Jerônimo Treccani e José Heder Benatti, ambos vinculados à luta da Comissão Pastoral da Terra, organismo da CNBB, atualizaram o diagnóstico dos graves conflitos rurais na Amazônia Brasileira.

Em power point foi projetada uma planilha sobre preços da terra naquela região. Em números redondos, 1 hectare de floresta virgem pode ser cotado em torno de R$ 500, enquanto o mesmo hectare de área desmatada atinge R$ 2.500. As duas cifras já alertam para a tendência impetuosa ao desmatamento, graças ao astronômico retorno financeiro que pode ser atingido em poucos meses.

Para evitar a destruição da mata e a crescente agressão ao meio ambiente, é imprescindível um compromisso nacional muito firme, mobilizando moradores da área, empresários, supervisão internacional e, sobretudo, garantindo-se fiscalização rigorosa e sanções a todos os violadores das leis de proteção. Exatamente o contrário dos estímulos que são emitidos oficialmente, desde Brasília, todo santo dia.

Coincidência preocupante com a data do painel em Belém foi o noticiário sobre a criminosa prisão de voluntários ambientalistas em Alter do Chão, spot paradisíaco do rio Tapajós, em Santarém, acusados falsamente como responsáveis pelos incêndios de agosto. Os quatro jovens terminaram soltos em poucos dias, por força da gritaria nacional e internacional em sua defesa.

O mais provável, segundo relatos da imprensa, é que especuladores e grileiros estejam por trás das ordens de prisão, em uma manobra para afastar suspeitas sobre eles próprios. Hipótese que indicaria certo grau de contaminação entre o crime e as próprias autoridades das instituições de segurança e justiça, raiz de toda impunidade.