"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Barroso e sua profecia de pitonisa, para suprimir o voto obrigatório

Paulo Sergio Pinheiro 7 Dez 2020, 11:44 delfos.png

Faz pouco as luzes da ribalta do espetáculo das eleições municipais e sua apuração se apagaram. Para não ficar à sombra, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, resolveu subir muita acima de suas tamancas, prenunciando que no Brasil o voto obrigatório está em transição para o voto facultativo.

Parece que baixaram no ministro os dotes das pitonisas de Delfos, que, sentadas em cadeiras altas de três pés, ficavam de frente a uma abertura na terra, de onde saía um gás, o pneuma, que as colocava em transe. A partir daí, faziam suas profecias. Como não consta que existam fendas da terra com gás no planalto brasileiro, Barroso deve ter se inebriado com os vapores e trapalhadas da apuração no primeiro turno das eleições municipais. Entrou em transe e se lançou ao vaticínio.

Quem teve o privilégio de sorver da boca do ministro a inusitada previsão foi a Folha de S.Paulo: "Acho que a gente começa a fazer uma transição. O modelo ideal é o voto facultativo e, em algum lugar do futuro não muito distante, ele deve ser", disse o magistrado em entrevista. Ele começa com “achar”, verbo para lá de impreciso. E prossegue, com um advérbio muito flou, desfocado, “em algum lugar do futuro não muito distante”, como convém a uma profecia. Pior ainda: o presságio vem acompanhado de sujeito coloquial indeterminado, “a gente”. Mas quem é “a gente”? O ministro, sua equipe, sua família, seus amigos, seus colegas de sodalício?

Em seguida, lançando uma ducha de água fria na própria predição, Barroso assume ares paternais em relação à democracia no Brasil e aos eleitores: “Por que, hoje, ainda não defendo voto facultativo? Acho que a democracia brasileira vem se consolidando, mas ainda é jovem (sic) e, portanto, ter algum incentivo para as pessoas votarem é positivo”. À guisa de análise da nossa democracia, recorre ao clichê gagá de Octavio Mangabeira, que, ao tomar posse no governo da Bahia, em 1947, comparou a democracia no Brasil a “uma planta tenra que precisa ser regada e cuidada sempre, sob o risco de não sobreviver”. Paternalmente, o ministro concluiu ainda que “é bom que os eleitores tenham algum incentivo para votar”.

Parecendo arrependido, alerta aos incautos que tenham se entusiasmado com a transição para o voto facultativo: “Nos países de voto facultativo, você incentiva a polarização, porque os extremos não deixam de comparecer, e os moderados muitas vezes deixam. Portanto, também por essa razão, ainda prefiro voto obrigatório com sanções leves, como é no Brasil”. Não se sabe a partir de que estudos ou pesquisas o ministro tirou essa conclusão. Simplesmente chuta o balde e diz que não defende a implementação imediata da proposta. Para que então se meteu nessa canoa furada de que “o Brasil iniciou a transição para o voto facultativo”?

No Brasil, prevalece a incompletude da democracia. Apesar de trinta anos de governos democráticos, o racismo, a desigualdade e a violência ilegal do Estado ainda perduram, compondo um estado de coisas inconstitucional. Desde 2018, estamos confrontados com um governo de extrema direita que visa enfraquecer as instituições democráticas e que tem restringido os espaços de participação política da população e das organizações da sociedade civil. Neste país, no qual a imensa maioria da população desconhece seus direitos, inclusive o de votar, é lastimável que justamente um presidente do TSE venha brandir a profecia da supressão do voto obrigatório.

Imagem: Sacerdotisa de Delfos (1891), John Collier