"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Nota Técnica # 3 - Em defesa da demarcação de terras do povo Guarani Kaiowá

Belisário Santos Jr, Manuela Carneiro da Cunha e Oscar Vilhena Vieira, 25 Mar 2021, 14:58 anciao-guarani-foto-cimi.jpg

O Supremo Tribunal Federal (STF) terá a possibilidade de corrigir, nos próximos dias, um erro histórico, que tem privado o povo Guarani Kaiowá de participar do processo sobre a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, no Estado do Mato Grosso do Sul, que tradicionalmente ocupam.

Os Kaiowá da Terra Indígena Guyraroká foram vítimas de expulsões sucessivas de seu território desde pelo menos a década de 1940. Diante de forças maiores, muitos ainda resistiram a abandonar seus territórios e se refugiaram nos fundos da fazenda que os desalojava, trabalhando como peões para sobreviver.

O cacique de Guyraroká, hoje com mais de 100 anos de idade, lidera tradicionalmente seu povo há décadas e passou por várias expulsões, inclusive com uso de violência, sem nunca perder o vínculo com a terra, tanto que permaneceu nos fundos da área originária até os dias atuais.

Confiantes no disposto no artigo 231 da Constituição de 1988, que reconheceu aos povos indígenas o direito originário sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, os Kaiowá de Guyraroká pediram ao Executivo a regularização fundiária que incumbe constitucionalmente à União. A Fundação Nacional do Índio (Funai), seguindo o decreto 1775/2006, encomendou e reconheceu um laudo antropológico e a proposta de delimitação dessa terra, publicando-a em 2004.

Passada a fase do contraditório, o Ministério da Justiça finalmente emitiu, em 2009, portaria declarando os limites e os direitos dos Kaiowá às suas terras. Ficavam faltando a demarcação física e a homologação para concluir a regularização fundiária, firmando assim a propriedade da União e a posse exclusiva dos índios.

Foi a essa altura que um fazendeiro entrou com um mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça contra a portaria do ministro da Justiça que declarava a Terra Indígena Guyraroká. Um recurso ordinário em mandado de segurança levou o caso ao STF. A Segunda Turma do Supremo, em 2014, apoiando-se na tese do Marco Temporal e citando a Funai para representar os índios, anulou a portaria ministerial e o reconhecimento da terra indígena.

O fato, porém, é que os Kaiowá de Guyraroká, sujeitos legítimos para defender os seus direitos em juízo, conforme disposto pelo artigo 232 da Constituição Federal, e principais interessados na ação, jamais foram citados, vindo a tomar conhecimento da decisão que culminou na anulação da referida regularização de sua terra de ocupação tradicional após o término do processo.

A tese aplicada, sem ouvir os indígenas, foi a controvertida tese do marco temporal, que urge ser pautada e definitivamente abandonada no STF. Essa tese, que aparece na Pet. 3388/RR, sequer foi aplicada naquele caso, tanto que a demarcação se deu de forma contínua, mas nunca em ilhas. Dessa forma, a tese não passou pelo contraditório, nem no caso Raposa Serra do Sol (Pet. 3388/RR), muito menos nos autos rescindendos, já que a comunidade indígena não foi citada.

O povo Guarani Kaiowá requereu o ingresso naqueles autos como parte, após ter sido informado da anulação do processo de demarcação. Esse pedido não foi conhecido e, para fundamentar a decisão denegatória, foi expressamente invocado o “regime tutelar”, previsto pelo Estatuto do Índio (Lei nº 6001/1973) e pela Lei 5.371/1967 (de criação da Funai), que não foram recepcionados pela Constituição de 1988, seja o regime tutelar, o que é inaceitável, do ponto de vista jurídico e de direitos humanos.

Mais do que isso, o manejo do mandado de segurança rompeu com a jurisprudência do Supremo, já que essa espécie processual não serve para debater e deliberar sobre matéria complexa, como são as demarcações de terras indígenas – que exigem provas de difícil análise. Tanto que após o julgamento do MS nº 29.087, pela Segunda Turma desta Corte, no ano de 2015, a Corte Especial julgou outros casos similares e não aceitou que o mandado de segurança fosse o remédio adequado para analisar questões de demarcação de terras indígenas (MS nº 31.100, Rel. Min. Edson Fachin, acórdão publicado em 02.09.2014; e MS nº 34.250, de relatoria do Ministro Celso de Mello, acórdão publicado em 19.10.2020).

Com objetivo de corrigir esses graves erros, o povo Guarani Kaiowá da Terra Indígena Guyraroká ingressou com ação rescisória (AR 2.686). A justificativa central dessa ação é a inexistência de citação válida (ou inexistência de citação, independente da validade) dos Kaiowá de Guyraroká, afrontando a Súmula 631 do STF, que determina: “[e]xtingue-se o processo de mandado de segurança se o impetrante não promove, no prazo assinado, a citação do litisconsorte passivo necessário”.

Necessário destacar que a Suprema Corte já tem decisão colegiada, tomada no Pleno, na AR nº 2.750 (relatoria da Ministra Rosa Weber), garantindo o cabimento, admissibilidade e deferimento de medida cautelar em ação rescisória idêntica, por inexistência de citação do povo Kaingang, do Paraná.

O que o povo Kaiowá busca é rescindir uma decisão que os privou de um direito originário às suas terras tradicionais, em que sequer puderam se fazer representar, pelo simples fato de que não foram intimados. Ao analisar esse caso, o STF terá a oportunidade de reafirmar seu compromisso em garantir os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, assim como sua condição de sujeitos autônomos de direitos, inclusive para defendê-los em juízo.

Foto: Adi Spezia/Cimi