"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

O círculo vicioso da violência

4 Dez 2021, 19:33 artigo-oglobo.jpg

As chacinas do Jacarezinho e do Complexo do Salgueiro demonstram que as polícias do estado do Rio de Janeiro vêm se negando, deliberadamente, a cumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu uma série de condicionantes para a realização de operações policiais com o objetivo de reduzir os altos índices de letalidade que delas decorrem.

A liminar proferida pelo ministro Edson Fachin, referendada pela maioria dos ministros da Corte, foi deferida 18 dias depois da trágica morte do menino João Pedro, em maio de 2020, num bairro da periferia de São Gonçalo, no Rio. Na casa com João Pedro estavam outras cinco crianças. Foram encontrados 72 disparos, o que confirma a exposição cotidiana das comunidades pobres — especialmente de seus jovens negros — a um padrão arbitrário e excessivo de uso da força letal pelas polícias.

Pois foi nesse mesmo bairro, o Complexo do Salgueiro, que nove pessoas foram executadas no último dia 20, durante uma operação que durou 33 horas, tendo sido contabilizados mais de 1.500 disparos pela polícia.

Apenas entre os meses de janeiro e julho de 2021, 811 pessoas morreram em decorrência de ações policiais no estado do Rio de Janeiro, conforme dados coletados pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF). Isso significa que, nesse período, quase 40% de todos os homicídios ocorridos no estado decorreram de intervenções policiais.

A violência policial é um sintoma da absoluta falência de sucessivas gestões do governo do estado do Rio — assim como do governo federal e das próprias Forças Armadas, que encabeçaram a ineficaz intervenção federal em 2017 — em assegurar o Estado de Direito e o direito à segurança à população fluminense, como previsto pelo caput do artigo 5º da Constituição.

O exercício arbitrário da violência policial que substitui o império da lei, quando não está diretamente associado a uma relação promíscua de setores contaminados das polícias com o tráfico ou com as milícias, indica uma tentativa por parte de governantes irresponsáveis de superar a própria incompetência no campo da segurança pública. O fato, porém, é que a violência e o arbítrio policiais jamais levarão à melhoria da segurança, menos ainda à paz social.

Como indicam reiterados estudos e a vasta experiência internacional, a violência policial não é apenas inaceitável jurídica e moralmente, como também é absolutamente ineficiente como estratégia de redução da criminalidade. Em primeiro lugar, a violência policial degrada as próprias forças de segurança, na medida em que anda de mãos dadas com a corrupção e com as diversas formas de crime organizado.

Mais do que isso, uma polícia violenta e arbitrária não angaria confiança da população, especialmente aquela mais vulnerável, que mais precisa da polícia; e, quando a população não confia na polícia, a cooperação necessária entre Estado e comunidade, indispensável para qualquer política efetiva de segurança, simplesmente não ocorre.

O que beneficia, única e exclusivamente, o crime. Por fim, a violência policial gera outro efeito adverso: ampliar o risco de vida dos próprios policiais. Quando suspeitos ou criminosos temem ser executados como resultado de uma operação policial, reagem de forma cada vez mais violenta, aumentando o número de policiais mortos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal abre uma oportunidade única para que esse círculo perverso da violência seja rompido. Desrespeitar a decisão ou atacar o tribunal, como têm feito policiais e autoridades, não apenas no Rio de Janeiro, apenas aprofundará um fiasco de estratégia de segurança pública que já ceifou a vida de mais de 1 milhão de brasileiros nos últimos 20 anos.

Artigo originalmente publicado em O Globo, 4/12/2021