Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Santo Dias vive!

Paulo Vannuchi 29 Out 2019, 13:55 comissao-arns-santo_dias-catedral-se.jpg

Sem pedir licença, Dom Paulo Evaristo Arns foi entrando nas salas do Instituto Médico Legal (IML) até chegar ao corpo do metalúrgico que tinha sido baleado algumas horas antes, por um policial militar que reprimia piquetes de greve na fábrica Sylvânia, zona Sul da cidade de São Paulo.

Colocou o dedo indicador na ferida da bala, rezou um Pai Nosso e disse aos delegados e policiais: “Vejam o que vocês fizeram”. Abraçou em seguida a jovem viúva, Ana Maria, também militante nas comunidades eclesiais de base, e já começou a pensar nos rituais católicos para um funeral que valesse como um verdadeiro “basta”.

Esse mesmo cardeal já tinha demonstrado ter a coragem de um profeta, desde que assumiu a Arquidiocese paulista, em 1970. Pouco depois de sua posse, denunciou, nas celebrações dominicais, as torturas sofridas por dois agentes de pastoral. Em 1973 e 1975, celebrou, na catedral da Sé superlotada, duas missas históricas para denunciar a morte de um estudante de geologia da USP e de um jornalista da TV oficial do estado, ambos vítimas de tortura. Os três episódios tinham o mesmo endereço, na rua Tutoia, o temível Doi-Codi – hoje exaltado pelo capitão eleito presidente.

Era uma tarde chuvosa em 30 de outubro de 1979 e, na manhã seguinte, uma passeata de 20 mil pessoas levou o corpo de Santo Dias, da igreja da Consolação, até a catedral da Sé, gritando sem nenhum medo de repressão: “Abaixo a ditadura!”.

Quarenta anos depois, o sindicalista assassinado segue falando pela voz de quem se lembra dele. Pessoas que se articulam para mantê-lo vivo, como memória e presença de uma dignidade indispensável a um povo que se pretende livre. Manifestações se repetem nestes dias em escolas, igrejas, comunidades, no Memorial da Resistência. Na quarta-feira, 30 de outubro, estarão junto ao monumento em sua memória, erguido no próprio cemitério do Campo Grande, onde está seu túmulo.

Foi relançado o livro com sua biografia, da lavra de três mulheres de muito valor: a própria filha Luciana, a jornalista Jô Azevedo, militante e testemunha de todos os fatos reconstruídos, e também a grande fotógrafa Nair Benedicto, presa política em 1969 ao lado de seu marido, Jacques Breyton, industrial de esquerda que já tinha sido herói na Resistência Francesa contra os nazistas, torturado pela Gestapo aos 23 anos de idade.

Tais celebrações se repetem há 40 anos, pela perseverança de seus familiares, do Comitê Santo Dias, das comunidades religiosas, de vários núcleos de memória sindical e política e do mesmo sacerdote Luís Giuliani, da Vila Remo, que levou Dom Paulo ao IML. Mas os eventos deste ano têm uma dimensão inédita. Pela primeira vez, as dez centrais sindicais dos trabalhadores decidiram se dar as mãos – por cima de suas notórias divergências – para realizar um ato unificado em memória de Santo Dias, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.

Mais de 200 pessoas se apinharam, na tarde da segunda-feira, 28 de outubro, para reafirmar, invocando Santo Dias, a disposição de lutar, hoje, contra os gravíssimos ataques aos direitos humanos que vão se repetindo no campo das relações de emprego e no mundo do trabalho.

O novo presidente da CUT, Sérgio Nobre, se sentava ao lado dos líderes da Força Sindical, Miguel Torres e Juruna. O metalúrgico Mancha, do PSTU, estava perto do deputado Paulo Pereira. Todas as demais centrais e também o onipresente Eduardo Suplicy (em seu primeiro ano como deputado estadual quando Santo foi morto) formularam discursos contendo uma promissora dose de unidade para enfrentar o perigo neofascista.

O representante da Pastoral Operária, Paulo Pedrini, lembrou também as torturas sofridas em 1974 pelo metalúrgico Waldemar Rossi, que em 1980 seria escolhido para saudar o Papa João Paulo II, em um estádio do Morumbi com as arquibancadas lotadas.

Santo Dias é hoje o nome de escolas, parques, praças, ruas, comunidades e da ponte sobre o Tietê que antes se chamou Socorro. A metáfora cai como luva. Esse líder sempre foi uma ponte. Continua sendo. O livro com sua biografia mostra as contagiantes virtudes de um operário que juntava firmeza e garra com serenidade, temperança e infinita disposição ao diálogo. Sua própria morte, ao que tudo indica, se deu em um contexto em que procurava acalmar e apartar, fazendo intermediação entre militantes e policiais.

Ponte também entre o trabalhador de ontem e o de hoje. Chegou a São Paulo vindo de Terra Rocha e Viradouro, na região de Ribeirão Preto, onde foi um jovem colono da confiança do fazendeiro – até o ponto de ser escalado para levar as filhas-sinhás do patrão às compras na cidade. Expulso da terra, no entanto, sem qualquer explicação, ao se atrever a sussurrar pequenas reivindicações, quando brotavam os primeiros direitos reconhecidos por lei no governo João Goulart.

Saga idêntica à de milhões de brasileiras e brasileiros que migraram para turbinar a pujança das cidades e das metrópoles. Saga já narrada por Graciliano Ramos nas últimas páginas de Vidas Secas, falando sobre o êxodo de Fabiano, de Sinhá Vitória, do menino mais novo e do menino mais velho.

Ponte também – pelo sangue africano que corria em suas veias – entre vultos históricos da galeria de Zumbi dos Palmares, Luiz Gama, João Cândido, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Carlos Marighella, dos séculos que já passaram, com a jovem Marielle Franco, que inspira com desbordante paixão as jovens e os jovens que ocupam as ruas e praças para defender a democracia e os direitos humanos.

Ponte entre a luta vitoriosa que se fortalecia em 1979 para sepultar um regime ditatorial, que durou 21 anos, com a luta de hoje. Agora, para impedir que volte um novo tipo de tirania, propugnada sem disfarces por altos mandatários nos poderes da República, através de seus reiterados gestos ou discursos eivados de ódio e intolerância.

Foto: Centro de documentação Unesp