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Bolsonaro e a banalidade do mal

José Eduardo Faria 8 Abr 2021, 15:05 operationfinale_eichmannontrial_govtpressoffice.jpg

Não foi só a maneira desabrida e insensata com que o presidente Jair Bolsonaro agiu com o ministro da Defesa e com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chama a atenção. Se for correto o que a imprensa divulgou, também é digna de nota a orientação que o presidente deu ao novo ministro, obrigando-o a anunciar aos comandantes militares que estavam demitidos, antes que eles pudessem colocar o cargo à disposição.

O objetivo do inquilino do Planalto, como os jornais informaram, era mostrar força, de um lado humilhando os três comandantes e, de outro, reforçando a narrativa de que o presidente é quem manda. Ainda que essa narrativa seja aceita como válida apenas por convertidos, pessoas banais que aceitam absurdos como normalidade, o problema está nas tentativas cada vez mais evidentes do presidente de fazer dos militares rigorosos cumpridores de suas ordens e determinações, mesmo que elas transcendam restrições constitucionais.

Ainda segundo a imprensa, as três demissões teriam sido justificadas pelo Planalto com base no fato de que, por considerarem as Forças Armadas uma instituição de Estado, seus comandantes não as estariam alinhando aos interesses políticos do chefe do Executivo. Reiteradamente alertando que, pela Constituição, o presidente da República é o “comandante em chefe” das Forças Armadas, Bolsonaro passou a chamá-las de “meu Exército”. E, com isso, também começou a insinuar que poderia acioná-lo a qualquer momento e para qualquer coisa — desde impedir os governadores de implementarem políticas de isolamento até afrontar a principal corte do País, acusando-a de restringir prerrogativas presidenciais.

Com o retorno das agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a questão agora é saber como se comportarão os oficiais do “seu” Exército, ou seja, se aceitarão fazer tudo o que lhes for pedido ou se respeitarão não apenas a Constituição mas, igualmente, a corte encarregada de dar a última palavra no controle da constitucionalidade. A questão não é simples, uma vez que, de um lado, ela envolve uma cadeia de comando que começa no Palácio do Planalto e vai descendo os níveis hierárquicos do aparato militar. E, de outro, implica o risco de cumprimento de ordens absurdas, que atendem mais aos objetivos eleiçoeiros de um governante do que ao interesse público e a segurança — na conformidade da ordem legal — do País.

São ordens que, dependendo do modo como forem transmitidas e cumpridas, conforme se viu na demissão dos comandantes das Forças Armadas, podem corroer os próprios valores éticos das corporações militares das Forças Armadas. Como não se espantar, por exemplo, com um general intendente que, aceitando chefiar o Ministério da Saúde sem ter formação especializada na área, cumpriu servilmente ordens agravantes da maior crise de saúde pública já vivida pelo país? “É simples assim: um manda e outro obedece”, afirmou esse general que, de tanto obedecer ordens presidenciais tomadas sem qualquer critério técnico, exacerbou a pandemia, em vez de detê-la, motivo pelo qual hoje está sendo acionado judicialmente.

Essa questão já foi por mim discutida num artigo recente, neste mesmo espaço, no qual analisei as explicações dadas por esse mesmo general com o objetivo de eximir o governo Bolsonaro de qualquer responsabilidade sobre a escassez da oferta de oxigênio em Manaus. Em nenhuma de suas explicações ele relacionou as ordens absurdas que recebeu com os milhares de brasileiros mortos por sufocamento. Os argumentos que retomo para analisar os militares com o perfil desse general baseiam-se na análise que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) fez há mais de meio século, no plano ético, de um dos oficiais de média patente que serviram ao regime nazista. [*] Trata-se de Adolf Eichmann, um tenente-coronel que recebeu a missão de administrar a logística das deportações em massa para os campos de concentração localizados nas zonas ocupadas pelas forças alemãs no leste europeu, durante a segunda guerra.

Eichmann estava, assim, situado no meio da cadeia de comando no setor da máquina nazista encarregado da “solução final” da “questão judaica” — o plano de remoção, por assassinato, da população judaica que vivia naquelas zonas. Por um lado, ele cumpria ordens. Por outro lado, as ordens que dava e as medidas que tomava, levando milhões de pessoas a diferentes formas de tortura e à morte, eram por vez balizadas por uma série de outras determinações emanadas de seus superiores.

Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, Eichmann fugiu para a Argentina. Muitos anos depois, foi sequestrado pelo serviço secreto israelita e levado para Jerusalém, onde foi julgado criminoso e condenado a pena de morte por enforcamento, em 1961. Convidada a cobrir o julgamento para a revista New Yorker, Arendt, que era judia, surpreendeu ao escrever cinco artigos na contramão dos que acusavam Eichmann de ser criminoso por ser nazista. Apesar de este ter sido o ponto mais abordado pelos jornalistas que cobriram o julgamento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si e que, quando integram um aparato de poder, agem apenas como funcionários diligentes. Ou seja, cumprem ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para matar inocentes.

Nesse sentido, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Eichmann não foi perverso, doentio, enraivecido e antissemita. Pelo contrário, destacava-se por ser educado e um homem comum — “assustadoramente normal”, dizia Arendt. Contudo, era incapaz de distinguir o certo e o errado. De resistir às ordens que recebia e cumpria. De avaliar moralmente o que de fato fazia e as consequências trágicas de seus atos administrativos. Apenas se orgulhava de executar corretamente suas tarefas. No fundo, foi um precursor do “simples assim — um manda, outro obedece”.

Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. Seu problema não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto e com base na lei — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.

Desse modo, sua dimensão cognitiva e moral foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, afirma Arendt. “Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava […] um novo tipo de criminoso, […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, concluía.

A ideia de banalidade do mal, desenvolvida por Hannah Arendt e por mim já utilizada para analisar o militarismo brasileiro contemporâneo, ajuda a interpretar o ocorrido com a demissão dos comandantes das Forças Armadas. Evidentemente, são distintos os contextos históricos dos males cometidos pelo nazismo, de um lado, e, de outro, o da profusão de decisões intempestivas, inconsequentes, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, um tenente medíocre e inconsequente reformado no posto de capitão por ser um “mau soldado”. Mas em ambos os contextos se visualiza a banalização do mal por impulso político e enviesamento ideológico. Igualmente, em ambos fica evidenciado como essa banalidade retira a humanidade dos indivíduos, tornando-os incapacitados de compaixão pelo próximo.

A exigência de Bolsonaro de que os comandantes das Forças Armadas se alinhem politicamente ao que chama de “meu Exército”, a ponto de afrontar governadores responsáveis que adotaram políticas de isolamento social, evidencia absoluta falta de compaixão com os recordes de mortos pela Covid que têm sido batidos diariamente. Também revela um desprezo pela existência humana e dá a medida da importância e da atualidade de Hannah Arendt. Notadamente quando ela afirma que o mal tem a ver com a liberdade de escolha do indivíduo, não sendo uma característica específica dele.

Pelo que se tem visto desde sua posse, Bolsonaro quer ao seu redor militares com perfis à sua imagem e semelhança — ou seja, reveladoras do ponto a que a barbárie humana pode envolver os indivíduos mais banais. Diante disso e da permanente tentativa de minar o império da lei com base nas mais toscas e torpes justificativas, só resta esperar que a cúpula das Forças Armadas seja capaz de evitar a corrosão do ethos da instituição a um ponto sem retorno, o que levará a democracia arduamente conquistada após a ditadura militar de 64 a ceder espaço para mais uma aventura autocrática. Na última tentativa de Bolsonaro de pressionar e enquadrar as Forças Armadas, a cúpula teve sucesso e o conteve. Até quando conseguirá resistir a novas ofensivas autocráticas?

José Eduardo Faria é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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[*] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, Peguin Books, New York, 1963.

Artigo originalmente publicado no caderno Estado da Arte, do Estado de S. Paulo

Foto: Eichmann em Jerusalém