Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Clamor por verdade e memória ecoa na Justiça de São Paulo

Belisário dos Santos Jr. 11 Out 2021, 15:24 doicodi.jpeg

“Gritos na Tutóia eram ouvidos por todas as pessoas no bairro” (Depoimento do preso político Ivan Seixas).

Pode ser que alguém ainda não saiba. Na rua Tutoia, 921, ao lado e aos fundos do 36º DP, na cidade de São Paulo, a partir de 1969 e até 1982 – sob a proteção do AI 5 e do Comando do II Exército, em prédio cedido pelo governo de São Paulo às Forças Armadas – funcionou uma das sedes da polícia política do regime militar. Ali era a “sucursal do inferno”, como os policiais, oficiais e torturadores lotados naquela “repartição” gostavam de dizer. Pessoas foram ali mortas, debaixo de tortura.

O caso Herzog talvez seja o caso mais conhecido e simbólico. Jornalista intimado a depor, Vladimir Herzog apresentou-se em um sábado de manhã, 25 de outubro de 1975. À tarde estava morto. A farsa que se seguiu foi escancarada por depoimentos, laudos, e há até decisão judicial reconhecendo a responsabilidade do Estado pelo homicídio e alterando o laudo de suicídio para morte sob tortura. Ali morreram também Joaquim Alencar de Seixas, pai de Ivan, Manoel Fiel Filho, tenente da PM José Ferreira de Almeida, entre inúmeros, presas e presos políticos.

Outros ali detidos foram torturados e dali retirados para desaparecer para sempre. Os que mais tarde conseguiram a liberdade sofrem a dor até hoje. “A tortura é uma marca que não sai”, sempre diz a jornalista e ex-presa política Rose Nogueira. Tudo às escâncaras, com total sentido da impunidade que vinha dos palácios de Brasília, como esclareceu o jornalista Elio Gaspari em vários livros. Era política de Estado para extermínio da oposição e não apenas surtos psicóticos de policiais ou militares doentes mentais. Isso está reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade, além de inúmeras publicações, muitas delas oficiais do Estado Brasileiro. O prédio foi tombado em 2014. Por vezes, no dia de Finados, ainda há quem deposite flores.

A verdade tem relação intrínseca com a memória. Temos que conservar viva a memória do passado, adverte Tzvetan Todorov. Não para pedir a reparação pelo dano sofrido, senão para estar alerta diante de situações novas e apesar disso análogas, alerta o filósofo búlgaro. “Aqueles que por uma ou outra razão conhecem o horror do passado têm o dever de levantar a voz contra outro horror atual, que se desenvolva a centenas de quilômetros ou a poucos metros de seus lares. Longe de seguir sendo prisioneiros do passado, conseguiremos tê-lo posto a serviço do presente, como a memória – e o esquecimento – hão de se por a serviço da justiça”, explica.

Pois bem, esse nefasto endereço da rua Tutoia foi novamente tomado, numa tarde de setembro de 2021, desta vez pelo Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), para a primeira audiência de conciliação na ação civil pública movida contra o Estado de São Paulo. O MPSP pede a preservação de todos os elementos estruturais e arquitetônicos do prédio para instalação de um memorial às vítimas da ditadura militar no Brasil.

O Núcleo de Preservação da Memória Política – que já administra o Memorial da Resistência (outro prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social - DOPS) e o Memorial da Luta pela Justiça no Brasil (prédio da Justiça Militar Federal na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, na capital paulista), este em conjunto com a OAB-SP – pediu e obteve a condição de partícipe (como litisconsorte) na ação judicial.

Ali se quer implantar um sítio de consciência, “de modo a permitir que a experiência histórica e seu conhecimento pavimentem a construção de uma consciência democrática coletiva, especialmente pelas novas gerações, a partir das diversas e documentadas narrativas e experiências pelos protagonistas que lutaram contra o terrorismo de Estado”, de acordo com a fundamentada petição. O Estado de São Paulo estuda uma proposta para encerrar a ação e iniciar a construção do memorial.

No dia da audiência, e antes de começarem os trabalhos, o juiz pediu para proceder a uma visita ao que ainda resta da estrutura. Mais concreto do que os restos dos prédios, foi a emoção daqueles que ali estavam, muitos ex-presos no local ou familiares ou amigo de mortos e desaparecidos naquelas dependências. Todos tentando imaginar um futuro em que, no memorial pelo qual se peleja, monitores mostrarão a história a estudantes e visitantes, em meio digital ou não, fotos, filmes, livros, documentos.

Ou simplesmente contarão a história de tantos brasileiros cujas vidas ali foram encerradas ou marcadas para sempre no sonho de um Brasil mais justo. Na mente de todos estava – e está – a ideia de que aqueles tempos não podem voltar. NUNCA MAIS.

Foto: O prédio é acessado pelos fundos da 36ª DP.