Desinformação e autoritarismo: quando a pandemia compensa
6 Jan 2021, 8:27 Victor MoriyamaSomos sempre atraídos pela ideia de que virar de ano é também trocar de sina, para melhor. Na passagem de 2020 para 2021, essa esperança tão singela deu lugar ao temor de que o novo ano pode ser ainda mais desafiador do que o seu precedente, a ser lembrado como o Ano da Covid-19. As baladas para centenas de pessoas, os terminais abarrotados de viajantes, as aglomerações em pontos turísticos, as praias tomadas por banhistas, a indefinição governamental sobre a vacinação e a pirotecnia festiva do presidente da República, Jair Bolsonaro, tudo leva a crer que podemos ter mudado de ano, mas não de sina: eis que o país chega aos 200 mil mortos pela pandemia.
2020 também deverá ser lembrado, e não por acaso, como o ano em que a desinformação funcionou como política de Estado. É triste rever, desde os primeiros casos da Covid-19 no Brasil, a enxurrada de absurdos ditos pelo governante, no sentido de corroborar um diagnóstico pessoal: ‘Esse vírus não passa de uma gripezinha’. Na sua visão de mundo, que evidentemente ele acredita ser a melhor e a única possível, quem duvidar da gripezinha deve fazer parte de um certo “país de maricas” que urina nas calças (seria o tal golden shower?) quando alguém espirra ao lado. Maricas têm medinho. Governadores, idem, como já disse o governante.
A desinformação como política de Estado acompanhou a sociedade brasileira todos os dias do ano que passou. De fato, foi o que motivou cientistas brasileiros, certamente classificados como maricas de laboratório, a virem a público explicar que o vírus era, e ainda é, altamente transmissível. Que seus efeitos no organismo humano assumem formas graves e letais. Que não há remédios de eficácia plena. Que a pandemia explodiu no mundo sem uma mísera vacina, embora centros de pesquisa tenham se lançado em experimentos ainda no primeiro semestre de 2020. E que o planeta, na sua totalidade, estava tomado pelo novo coronavírus no Réveillon que tantos festejaram, sem cautela.
No combate à desinformação que o governante espalhou de maneira até programática, alimentando milhares de bolhas de fake news nas redes sociais, também esteve presente a imprensa. Jornalistas não só ouviram os cientistas. Eles percorreram este país de norte a sul para mostrar a realidade da pandemia, que castiga tão desigualmente a população. E não fosse por um esforço coordenado dos veículos de comunicação, não teríamos sequer dados confiáveis sobre a atual crise sanitária. Entre besteiras disseminadas ao vento a partir da biruta do Palácio do Planalto, trataram de defender a liberdade de expressão e o direito à informação.
Mas, também é preciso reconhecer que a política da desinformação logrou resultados. Por exemplo, ela se deu bem ao fazer com que boa parte do setor produtivo, assim como parte da classe trabalhadora, acreditassem que enfrentar o vírus de peito aberto seria a salvação da economia, da lavoura, dos investimentos, dos empregos, do consumo, etc. Ainda que a realidade tenha demonstrado o contrário, ou seja, a inépcia do governante, fundada em negacionismo puro, só fez inviabilizar qualquer tentativa de retomada econômica – que não virá em 2021, nem com vacina, nem com reza brava.
Investidores bateram em retirada. Fundos condicionam suas operações a compromissos com a preservação das florestas. O parque industrial desaba. Empresas demitem, fecham as portas, entram em recuperação judicial, dão calote. O desemprego segue alarmante e o auxílio emergencial, ao sumir do bolso de milhões de brasileiros, prenuncia situações de desespero. No entanto, para uma razoável parcela dos brasileiros, é justificável que o governante reitere que o vírus deve ser combatido com cloroquina, não com distanciamento. E que morrer, todo mundo um dia morre. O apoio a esse tipo de postura lembra o abraço dos náufragos -- na verdade, todos afundaremos.
Diante de 200 mil mortos, é preciso admitir que, para Jair Bolsonaro, as vítimas fatais da Covid-19 são um acidente de percurso, na direção da sua perpetuação no poder. Hoje esses mortos lotariam dois Maracanãs e meio. Imagine um Maracanã só, totalmente cheio, com pessoas em silêncio, como holografias da tragédia. Agora, imagine dois Maracanãs e meio. Na realidade, as vidas perdidas estão por toda a parte. Nas valas comuns de um Brasil que o governante insiste em não ver. Na dor das famílias enlutadas, das quais ele prefere manter distância. Na inútil espera por UTIS, que ele evita conferir. Na vida de crianças que crescerão sem ver pais e avós. No futuro de jovens que não mais voltarão a estudar. Mas, e daí?
O governante segue um plano definido. Hoje, ele continua insuflando as suas claques, para que elas deem a impressão de constituir maioria expressiva da sociedade brasileira, e, ao fazê-lo, obedece às diretrizes de um gabinete dedicado ao controle social pela desinformação e à propagação do discurso do ódio. Gabinete, diga-se de passagem, orientado por tipos lunáticos que se vendem (e muito caro) como construtores de uma nova aliança conservadora mundial.
As diretrizes já são manjadas: na visão lunática, uma sociedade acuada, silente, confusa, será sempre um bom negócio para o governante. Hoje se trata de manter uma certa paralisia social através do temor ao vírus, do número acumulativo de óbitos, de atrasos e empecilhos no programa de vacinação (o que já desmente qualquer intenção de retomada econômica) e no permanente besteirol que ajuda a desviar o foco dos temas, de fato, cruciais. Receita para manter o poder: medo, desânimo, caos e desinformação.
No entanto, população imunizada pode sair de casa. Pode se juntar. Pode reivindicar. Pode criar palavras de ordem. E o povo nas ruas, como já se viu outras vezes, muda o rumo da História. Eis uma encrenca enorme para o governante, mas algo que pode ser duplamente vital para o País. Então, VACINA JÁ!
Que 2021 seja o ano em que a esperança de se alcançar alguma forma de controle da pandemia se concretize, não só para o Brasil, mas para todas as nações. E que seja o ano de combate a toda a forma de desinformação que coloque em risco a vida humana.