Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Direitos indígenas: inalienáveis e inegociáveis

Maria Victoria Benevides, José Carlos Dias, Fabio Comparato 5 Ago 2024, 9:42 audiencia - adriano machado - greenpeace Foto: Adriano Machado/Greenpeace

A Comissão Arns vem manifestar sua enorme preocupação com a disposição do Estado brasileiro em cumprir com sua obrigação constitucional de garantir o direito originário dos povos indígenas às suas terras. Nos últimos meses têm crescido a violência e as invasões de territórios indígenas.

De acordo com o artigo 231 da Constituição, as terras indígenas são "inalienáveis, indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis". Mais do que isso, são nulos e extintos, não produzindo efeitos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posses das terras indígenas".

Essa fórmula reiterativa de proteção às terras indígenas adotada pelo constituinte foi uma resposta a séculos de violência e espoliação contra os povos indígenas. Mais do que isso, foi uma fórmula precavida.

Como sabemos, a usurpação das terras indígenas se deu, e ainda se dá, não apenas pelo emprego de violência nua e crua, mas também por meio de leis, decisões judiciais e registros civis ardilosamente engendrados para revestir essas usurpações com manto de legalidade.

A tese do marco temporal fez parte desse conjunto de estratégias, tendo sido declarada inconstitucional pela ampla maioria do Supremo Tribunal Federal. Essa decisão colocou fim à insegurança jurídica e restabeleceu a autoridade da Constituição. Mas, evidentemente, descontentou àqueles que colocam seus interesses acima da lei e da Carta, levando a maioria parlamentar a reeditar a malfadada tese do marco temporal, em clara afronta ao STF.

Causou surpresa, portanto, que o ministro Gilmar Mendes, em vez de reiterar a declaração de inconstitucionalidade dessa lei, tenha decidido dar início a um processo de conciliação entre as múltiplas partes interessadas, mas que, em síntese, se refere à contraposição entre direitos originários dos indígenas e interesses pecuniários daqueles que se arvoraram sobre suas terras.

A despeito dos nobres motivos apresentados pelo ministro, a decisão mereceria ser reconsiderada. Em primeiro lugar, porque os direitos dos povos indígenas às suas terras são inalienáveis e indisponíveis, não podendo, portanto, ser objeto de transações de natureza política. Caso o Supremo assuma o papel de câmara de negociação, em detrimento da função de guardião de direitos, quem ficará responsável pela defesa de minorias vulneráveis e historicamente discriminadas?

Importa dizer, por fim, que não são apenas os direitos dos indígenas que estão em jogo nessa conciliação.

As terras indígenas são barreiras ao desmatamento; barreiras, portanto, às mudanças e desastres climáticos, que comprometem o sucesso da agricultura e o bem-estar das futuras gerações. Conforme o mais recente Prodes-INPE (2023), as 456 terras indígenas com algum reconhecimento na Amazônia Legal, embora ocupem pouco mais de um quinto desse território, são responsáveis por apenas 2,01% do seu desmatamento acumulado. Boa parte desses 2% de desmatamento foram provocados por madeireiros, garimpeiros e grileiros invasores.

As terras indígenas também constituem a maior proteção à nossa riquíssima biodiversidade. Com terra suficiente, as formas tradicionais de agricultura indígena garantem a regeneração da floresta e a abundância de comida. Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. O Brasil precisa dos territórios indígenas e do modo tradicional indígena de conservá-los.

O Supremo tem tido um papel fundamental na defesa de minorias e da própria democracia. No momento em que foi mais duramente ameaçado pelos inimigos da democracia e da Constituição, esta comissão, em parceria com outras organizações da sociedade civil, mobilizou-se na defesa do tribunal e de seus ministros. Logo, as críticas aqui feitas têm por única finalidade contribuir para que a corte mantenha seu inegociável compromisso com a Constituição e com os direitos por ela reconhecidos, especialmente aqueles voltados à proteção de minorias.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 5/8/2024