Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Em defesa do direito à memória e à verdade

27 Set 2022, 9:30 anistia

Este foi o título de um artigo publicado pela Folha de S. Paulo, em junho deste ano, por quatro destacados defensores dos direitos humanos no Brasil: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; os ex-ministros da Justiça Nelson Jobim e José Gregori; e o ex-secretário de Estado de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro. Gregori e Pinheiro são também membros fundadores da Comissão Arns.

Na época, um gestor indicado pela então ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, propunha encerrar os trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Hoje, o governo ameaça com mais uma violação à memória e à verdade: a Comissão de Anistia pode ser encerrada, após Damares negar publicamente a existência dos anos de chumbo e considerar “desperdício de dinheiro público” armazenar o acervo histórico produzido por essa comissão.

Continuam valendo as reflexões e o alerta feitos pelos quatro autores do artigo sobre a Comissão de Mortos e Desaparecidos.

Leia a íntegra do texto.

Em defesa do direito à memória e à verdade

Durante a ditadura militar e até 1995, os parentes dos mortos e desaparecidos no Brasil não tinham atestado de óbito de seus familiares, o que bloqueava todos os atos da vida civil, como testamentos e novos nascimentos, colocando os filhos em uma situação esdrúxula, sem poder provar a morte de um dos genitores. Não podiam adquirir ou vender bens, pois se exigia certidão de estado civil — além da imensa dor e angústia de viverem sem qualquer informação sobre o paradeiro de seus entes queridos.

Indo ao encontro do clamor dos familiares dos mortos e desaparecidos, em 1995 foi sancionada a lei 9.140, pedra angular de todo o processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelas graves violações de direitos humanos e crimes praticados pelos agentes da ditadura militar, concedendo reparações aos familiares. Ao mesmo tempo era criada a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), referida ao período de 1961 a 1979.

Atendendo a justas reivindicações dos familiares, o termo final de sua aplicação foi alterado por lei para o dia 5 de outubro de 1988. Outra lei, em 2004, ampliou a atribuição da CEMDP para proceder ao reconhecimento de pessoas falecidas em virtude de repressão policial ou em decorrência de suicídio na iminência de serem presas.

A CEMDP, instituição impar na história constitucional brasileira, deu notáveis contribuições, sob três governos sucessivos, à efetivação do direito à memória e à verdade. Mas, depois do início do governo Jair Bolsonaro (PL), uma série de retrocessos levou à sua desmobilização.

Em janeiro de 2020, novo regimento da CEMDP acabou com a emissão de atestados de óbito que reconheciam como verdadeira causa da morte das vítimas da ditadura a "perseguição violenta e política do Estado". Inviabilizou a busca dos corpos dos militantes políticos que seguem desaparecidos, mesmo passados 30 anos do fim da ditadura. Desobrigou o governo federal de promover reparação simbólica, como monumentos e memoriais de homenagem às vítimas.

A extinção da CEMDP está anunciada, mesmo que ainda esteja longe de concluir sua missão legal. Há numerosos casos pendentes, que demandam providências, como reconhecimento de vítimas, busca e localização de corpos e registro de óbitos que ainda não foram objeto de requerimentos individuais, como ocorre com os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério Ricardo Albuquerque.

A identificação de ossadas em estudo e na guarda direta ou indireta da comissão aguarda confronto com o DNA dos familiares. O atual governo tem repetidamente negado recursos — ainda que a isto esteja obrigado legalmente — ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Unifesp.

A extinção da CEDMP viola tanto a legislação brasileira como desrespeita sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund. Ali foi estabelecido que "o direito dos familiares das vítimas de identificar o paradeiro dos desaparecidos e, se for o caso, saber onde se encontram seus restos, constitui uma reparação e, portanto, gera o dever correspondente pelo Estado de atender a essa expectativa".

Neste momento, graves pressões recorrentes são feitas contra o processo democrático e assistimos chocados a crimes bárbaros, como o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. É crucial que as instituições do Estado brasileiro reafirmem seu compromisso com a proteção do direito à memória e à verdade. Apelamos em especial à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a tomar medidas urgentes para impedir a extinção iminente da CEMDP.

O desaparecimento forçado afetou centenas de famílias no Brasil e em toda a América Latina durante as ditaduras militares. A ONU, já em 1978, expressava alarme sobre essa grave violação dos direitos humanos. Enquanto não forem exauridas todas as formas de investigações, se prevalecerem a dúvida e a impunidade, familiares seguirão sofrendo as consequências desse crime permanente e continuado.

Artigo sobre a ameaça de extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos, originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2022.