Justiça sob medida: uma para elites brancas, outra para pobres e negros
15 Out 2021, 13:08A investigação chamada Pandora Papers foi feita por um consorcio de veículos de imprensa, como a revista Piauí, de cujo relato do qual aqui me valho . A apuração mostrou que, em 2014, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, fundou a offshore Dreadnoughts (encouraçado, em português) Internacional, no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe. Guedes aportou ao negócio valor hoje correspondente a 51 milhões de reais. Devido à alta do câmbio de 39%, desde que Guedes virou ministro, essa operação teve um ganho de R$ 14,5 milhões.
Outro coleguinha de Guedes neste governo, o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, também criou uma offshore, em 2004: a Cor (suas iniciais ao contrário) Assets, com um investimento que equivale hoje a 5,8 milhões de reais. Ele continuava controlador da offshore, quando assumiu seu posto no órgão pública, em fevereiro de 2019, e ali passou 602 dias desfrutando de acesso a dados estratégicos, como câmbio e taxas de juros, até que, em outubro de 2020, sua empresa foi fechada. Segundo o jornal El País, Campos Neto seria dono de quatro empresas. Duas no Panamá, em sociedade com sua esposa, outra nas Bahamas. Uma quarta, de “gestão de bens imóveis”.
Guedes e Campos Neto alegam que, durante o exercício de seus cargos no governo afastaram-se da administração das offshores. Entretanto, tendo a esposa, ou a filha, como sócia, fica difícil acreditar em um efetivo distanciamento.
Ambos informam que tudo declararam ao fisco. Ainda que não seja ilegal ter offshores, movimentações no exterior precisam ser declarados ao Branco Central e à Receita Federal. Configurando uma enorme artimanha de sonegação, aponta a revista Piauí, há uma diferença considerável entre a quantia de R$ 1 trilhão, declarada ao BC, os R$ 50 bilhões informados para a Receita. E, ainda, lembre-se que, sobre a remessa legal de valores para o exterior, se abate uma doce tributação de 0,38% de imposto sobre operações financeiras, mais a tarifa bancária.
Duas notícias-crime contra Guedes e Campos Neto, apresentadas pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e pela Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed), solicitaram que o Supremo Tribunal Federal (STF) pedisse à Procuradoria-geral da República (PGR) a apuração do caso das offshores. Normalmente, os ministros do STF simplesmente encaminham esse tipo de representação ao PGR. Porém, o ministro Dias Toffoli, ultra solícito em tudo que implique proveito a esse governo de extrema direita, mais que prontamente arquivou os pedidos. Argumentou que as representações deveriam ter sido encaminhadas diretamente à PGR, “não cabendo ao Judiciário imiscuir-se (sic) na atuação daquele órgão”.
Enquanto isso, quase no mesmo dia da decisão do STF sobre as offshores de intergantes do governo, a 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo negou habeas corpus apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de uma mulher acusada de furtar um refrigerante de 600 ml, dois pacotes de macarrão instantâneo e um pacote de suco em pó, no valor de R$ 21,69. Os três desembargadores consideraram que a mulher "ostenta passado desabonador" e "dupla reincidência específica”. Mãe de cinco filhos, ela ficou duas semanas detida e só foi liberada devido a novo pedido de habeas corpus da defensoria ao STJ.
Impossível deixar de comparar esse prestimoso arquivamento, pelo ministro Toffoli, sobre operações envolvendo mais de R$ 70 milhões, com aquela decisão contra uma mulher pobre, por um furto no valor de R$ 21,69. Devassado fica o sesquipedal abismo entre o tratamento carinhoso que o sistema de Justiça assegura a elites dirigentes brancas endinheiradas e as decisões implacáveis contra cidadãos vulneráveis, pobres e negros.