Nota Pública #38 - O CFM e a saúde pública no Brasil
17 Out 2021, 10:07A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns vem a público manifestar seu espanto e total indignação em relação à conduta do Conselho Federal de Medicina (CFM) e de seu presidente, Dr. Mauro Ribeiro, verificada ao longo da pandemia.
A pretexto de defesa da autonomia médica, exigência ética da profissão, que não se coaduna com a violação dos ditames da consciência dos profissionais da saúde, o referido Conselho, uma autarquia federal criada justamente para supervisionar condutas e práticas do setor, aprovou o parecer CFM 4/2020 e o mantém vigente ainda hoje, considerando o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em diferentes situações.
Conforme o parecer CFM 4/2020, considera-se o uso destes medicamentos, já hoje sabidamente ineficazes, em relação (i) a pacientes com sintomas leves, (ii) a pacientes com sintomas significativos, mas sem necessidade de cuidados intensivos e até (iii) a pacientes críticos, recebendo cuidados intensivos, incluindo ventilação mecânica e com lesão pulmonar estabelecida, uma vez ser difícil imaginar que essas drogas possam ter um efeito clinicamente importante (conclusões do próprio parecer!).
A motivação política e a ausência de rigor científico aparecem claramente em reunião virtual de 7 de maio de 2020, perante o Conselho Regional de Medicina de Goiás, quando o presidente do CFM reconhece que as drogas liberadas não têm qualquer evidência científica que comprove a sua eficácia e que a liberação foi “completamente fora das normas do Conselho”. Afirma, no mesmo evento on-line, como a se explicar do absurdo, que a classe médica foi profundamente afetada pela popularização da medicina à época da presidente Dilma Rousseff, sendo que o atual presidente da República atende a todas as reivindicações do Conselho!
Diga-se que o malfadado parecer não faz qualquer referência às recomendações sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras organizações da área, como distanciamento social, quarentena, uso de máscaras, testes em massa e vacinação, entre outras medidas de prevenção. No entanto, o parecer reconhece o caráter experimental da recomendação e relembra que a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas só anui ao tratamento com essas drogas em pacientes internados sob protocolos clínicos de pesquisa.
A pergunta que não cala é: se é assim, para que liberar drogas ineficazes, senão para engrossar os argumentos das hostes do presidente da República negacionista, como já reconhecido explicitamente? Deve-se dizer ainda que não se trata de drogas meramente inócuas, ao contrário, são drogas que podem causar efeitos deletérios sobre um quadro de saúde já debilitado.
Confira-se que o artigo 99 do Código de Ética Médica veda a participação do médico em qualquer experiência envolvendo seres humanos que tenham fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade humana. Apesar de tudo isso, qual Pilatos, o presidente do CFM diz e repete a toda hora: nada recomendamos. Só liberamos o uso das drogas.
Não é autonomia médica que se quer, senão o incentivo ao erro médico, por razões de política interna do CFM e de seu presidente. Pretendendo deixar claro que não serão penalizados os profissionais que seguirem a recomendação equivocada e “fora das normas do CFM”, o Conselho também se manifesta no sentido de que médico que se portar dentro das condições “recomendadas” pelo parecer nº 4 não comete infração ética. Esta é, na verdade, uma cláusula de exclusão de responsabilidade fora da lei e do Código de Ética Médica!
Há dias a Defensoria Pública da União distribuiu à Justiça Federal em São Paulo ação civil pública, pedindo a responsabilização do CFM por todas essas condutas e a suspensão imediata do parecer CFM 4/2020 e de sua vigência.
Assim decidindo, se fará justiça a centenas de milhares de brasileiros mortos por Covid-19, entre eles, centenas de médicos e de profissionais da saúde na linha de frente do combate à pandemia, e também a todos os profissionais que ainda lutam por debelar a epidemia sanitária e a epidemia de desinformação que sutilmente visa minar a vacinação em massa, induzindo à imunidade de rebanho. Médicos e médicas brasileiras que honram, dia após dia, o Juramento de Hipócrates, com o risco de suas vidas e da saúde de suas famílias, não merecem o CFM que se pronuncia com essa irresponsabilidade. Com a palavra, a Justiça Federal em São Paulo.
São Paulo, 15 de setembro de 2021
Foto: Isac Nóbrega/UOL