"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

O Brasil precisa de paz

Margarida Genevois, José Carlos Dias e José Gregori 9 Mai 2022, 10:44 brasilpaz.jpg

A Constituição jamais​ estará a serviço de quem quer destruí-la. Ela não pode ser invocada, interpretada ou aplicada para favorecer ou assegurar a impunidade daqueles que buscam aniquila-la. A tentativa de subverter a ordem constitucional é crime e não pode passar impune.​

Ao agraciar com a impunidade um condenado que atentou contra as instituições democráticas, o presidente da República viola, ele próprio, o pacto constitucional. A concessão de graça, nos termos expressos no decreto presidencial, não encontra respaldo nas atribuições do presidente da República. Tal como concedida, fere o princípio Republicano, que não autoriza o presidente a colocar suas preferências e interesses pessoais acima da lei, assim como fere o princípio da separação de poderes, pois o indulto foi empregado como verdadeira anistia, usurpando função do Confresso Nacional, e com clara finalidade de confrontar uma decisão judicial.

O indulto previsto na Constituição, para ser compatível com o princípio Republicano e o princípio da separação de poderes, que constituem cláusulas pétreas de nosso sistema constitucional, não pode ser interpretado como uma competência discricionária absoluta do presidente, que lhe autorize atender interesses pessoais ou agraciar apaniguados que afrontem a legalidade.​

Ao abusar de suas prerrogativas institucionais, o presidente deixa claro seu propósito de desestabilizar as instituições. No Estado de direito, no entanto, não há esfera de poder imune ao controle do judiciário. Sendo função precípua do STF guardar a Constituição, caberá a ele definir sobre a validade do lamentável decreto.

Ainda que todas as instituições e autoridades devam respeitar e estejam obrigadas a defender a Constituição, em casos de divergência entre os poderes, a responsabilidade pela última palavra cabe exclusivamente ao STF. E isso por determinação da própria Constituição.​ Insurgir-se contra essa regra seria trair a Constituição.

Neste momento de grave crise que vive a República é fundamental que o Senado Federal, Câmara dos Deputados, Governadores dos Estados se alinhem na defesa da democracia, hoje duramente vilipendiados por sucessivos atos de vandalismo politico.

A democracia arduamente construída após mais de duas décadas de regime de exceção, que roubou o direito legítimo do povo brasileiro de escolher seus governantes, sem falar na sistemática violação de direitos humanos, vê-se novamente amaçada, agora por milicianos institucionais, que plantam o caos com o propósito de colher a graça do poder sem limites.

O Brasil precisa de paz para poder se desenvolver. Temos muitos desafios pela frente. O flagelo da fome, do desemprego, da deseducação, da desigualdade, do racismo estrutural; a volta da inflação, que preda os salários dos mais pobres, a ineficiência econômica, a baixa produtividade e a insegurança para investimentos; a devastação do meio ambiente, que constitui um de nossos principais ativos; a insegurança pública, que deixa a população refém das milícias e do tráfico; a constante afronta aos direitos dos povos indígenas; além de um galopante isolamento internacional, com graves consequências para a defesa dos interesses nacionais. Nenhum desses problemas será devidamente superado num ambiente de constante crise, fomentada deliberadamente por um governo obcecado, única e exclusivamente em permanecer no poder, erodindo nossa democracia constitucional.​

O Brasil precisa de paz interna para que alunos possam aprender, para que os trabalhadores possam conquistar seu sustento, para que os empresários possam investir e inovar, para que os militares possam cumprir sua missão de proteger nossas fronteiras, sem interferir na política. Enfim, para que cada cidadão possa buscar uma vida digna.

Não há mais espaço para ingenuidade e muito menos para a omissão criminosa por parte dos que têm obrigação defender a Constituição e as instituições do Estado Democrático de Direito.

A escalada de ataques a nossas instituições deve ser imediatamente contida, sob pena de vermos definitivamente pavimentada o caminho para um regime autocrático. O Supremo Tribunal Federal tem o respaldo de todos aqueles que são leais à Democracia, devendo ter a tranquilidade de cumprir a sua missão de guardião último da Constituição.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 8/5/2022