Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

O direito à memória e à verdade

Fábio Konder Comparato 14 Fev 2020, 8:30 o-jornalista-luiz-eduardo-merlino-morto-em-1971-em-uma-de-suas-ultimas-fotos-.jpg

Desde o final do século 19, com a Proclamação da República, buscamos reiteradamente “modernizar” a nossa vida política, sem alcançar nenhum resultado efetivo e duradouro. A última tentativa ocorreu em 1988, quando, fatigados de mais de dois decênios de regime militar, promulgamos uma nova Constituição – a qual até hoje está em vigor, embora tenha sido emendada 105 vezes, sendo que a última emenda é datada de 12 de dezembro de 2019.

Acontece que, a partir de 1824, data em que foi promulgada nossa primeira Constituição – há quase três séculos, portanto – consolidou-se o fato de que o país possui dois sistemas políticos: o oficial, que só é aplicado quando não contraria os interesses do grupo oligárquico; e o efetivo, criado pelos poderosos caso por caso, mas que nunca é promulgado.

Durante toda a duração do regime militar, e mesmo depois que ele foi encerrado, um bom número de magistrados colaborou vergonhosamente com o terrorismo governamental. Alguns poucos exemplos bastam para ilustrar o fenômeno.

Assim é que, em 1979, como preparação à sua saída do poder, os chefes militares decidiram se autoanistiar, promulgando para tanto uma lei de encomenda.

Em 2008, como advogado do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ingressei no Supremo Tribunal Federal com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF nº 153, suscitando a nulidade dessa autoanistia, com base em nossos princípios constitucionais e em vários tratados internacionais celebrados pelo Brasil. Essa ADPF foi julgada improcedente, contra os votos apenas dos ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. Seis meses depois de publicado esse acórdão, no entanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), declarou inválida por unanimidade essa lei de autoanistia.

Os governantes militares, porém, não levaram em conta que a lei em questão, ao fixar a validade da “anistia” para os “crimes políticos ou conexos”, cometidos entre 2 de setembro de 1971 e 15 de agosto de 1979, não abrangeu os delitos de desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, pois estes só se consideram consumados quando reaparece a vítima ou quando o cadáver é descoberto. Diante dessa omissão cavilosa, ingressei com o recurso de embargos de declaração, o qual, distribuído em 2002 ao ministro Luiz Fux, provável futuro presidente da Corte, até hoje não foi sequer posto em julgamento; nem o será jamais, obviamente. No entanto, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 337, § 2º) declara que “a petição (dos embargos) será dirigida ao Relator do acórdão que, sem qualquer outra formalidade, a submeterá a julgamento na primeira sessão da Turma ou do Plenário, conforme o caso”.

De setembro de 1970 a janeiro de 1974, ou seja, em pleno regime militar, chefiou o DOI-CODI do II Exército em São Paulo, órgão criado para reprimir violentamente a resistência ao então regime empresarial-castrense, o major (depois promovido a coronel) Carlos Alberto Brilhante Ustra. Durante esses quatro anos, 60 presos foram assassinados, depois de barbaramente torturados, sendo que os corpos de vários deles desapareceram.

No entanto, para muitos integrantes da atual oligarquia que domina o país, Ustra é considerado um “herói nacional”, como o caracterizou, por exemplo, na Câmara dos Deputados, o atual presidente da República, capitão reformado do Exército, ao votar o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.

Obviamente, as autoridades militares obrigaram os cartórios de registro civil a expedir certidões de óbito falsas dos presos políticos assassinados nas prisões militares. Por exemplo, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que faleceu sob torturas que duraram quatro dias seguidos, teve como causa mortis na certidão de óbito “anemia aguda traumática”. A falsa versão somente foi desmentida pela Comissão Nacional da Verdade em 2014, passando a constar que Merlino teve “morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro, no contexto de perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora”.

A retificação das certidões de óbito falsas foi feita a pedido da ilustre procuradora da República Eugênia Gonzaga, então presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Por essa razão, ela foi afastada do cargo em 2019 pelo atual chefe do Poder Executivo Federal, juntamente com mais três outros integrantes da Comissão.

Acontece que, ao receber os pedidos de retificação das certidões de óbito, os cartórios recusaram-se a fazê-lo, obrigando os familiares dos falecidos a ingressar na Justiça para consegui-lo.

Não satisfeito com isso, ingressei em 2005 com uma ação declaratória contra Ustra, já então coronel reformado do Exército, a fim de que fosse confirmado judicialmente o fato de que César Augusto Telles e sua esposa Maria Amélia, bem como seus dois filhos, quando tinham 4 e 5 anos, foram torturados no calabouço do DOI-CODI. A decisão foi julgada procedente e transitou em julgado.

Alguns anos após, propus, em nome de Ângela Maria Mendes de Almeida e Regina Maria Merlino Dias de Almeida, uma ação indenizatória por danos morais contra Ustra, pois Luiz Eduardo da Rocha Merlino, companheiro da primeira e irmão da segunda, foi torturado até a morte pessoalmente pelo próprio réu. A ação foi julgada procedente pela eminente juíza Cláudia de Lima Menge, que condenou Ustra a pagar R$ 50 mil a cada uma das autoras.

O réu apelou da sentença, sendo a apelação distribuída ao desembargador Luiz Antônio Costa, como relator. Este, porém, declarou-se de imediato “suspeito por motivo de foro íntimo”, afirmando que o exame do caso “exige análise de contexto político-partidário, o que não posso fazer com a necessária isenção”. Por acaso, sua Excelência fazia parte de algum partido político ou colaborava com algum movimento político? Ao que parece, o desembargador desconhece a norma do art. 95, parágrafo único, inciso III da Constituição Federal, que veda a todo e qualquer magistrado “dedicar-se a atividade político-partidária”.

A apelação foi, então, redistribuída ao desembargador Salles Rossi, o qual, por sua vez, determinou a suspensão do processo por um ano, “até que aquela Corte (o Supremo Tribunal Federal) volte a julgar a validade da Lei da Anistia”. Que se saiba, porém, só houve uma única ação judicial movida no Tribunal Supremo contra essa lei. Seja como for, por acaso, o ilustre desembargador entende que uma anistia criminal impede a propositura, por parte da vítima de um anistiado, de uma ação civil de indenização? Como explicar a ocorrência dessa manifesta confusão conceitual?

Afinal, depois vários recursos e uma reclamação ao Supremo Tribunal Federal, que evidentemente dela não tomou conhecimento, em outubro de 2018 o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou extinta a ação, por prescrição; ou seja, tomaram-se todas as providências para retardar o andamento do processo até que ficasse encerrado o prazo de prescrição. Pior: o presidente da Seção de Direito Privado do Tribunal rejeitou sumariamente os dois recursos interpostos contra esse acórdão.

Exatamente porque o Brasil continua a ignorar o dever fundamental de julgar e punir os responsáveis por torturas e assassínio de presos, entre outras barbaridades, é indispensável que em nosso sistema educacional seja dada toda importância ao direito à verdade e à memória.