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O que você fez com sua vida?

Paulo Sérgio Pinheiro 13 Out 2022, 15:16 20221011_1_Título Honoris Causa_Paulo Sergio Pinheiro_Consu_scarpa_AJS_1163 O reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida Meirelles, Tom Zé, entrega o título a Paulo Sérgio Pinheiro. - Foto: Antonio Scarpinetti - SEC - Unicamp

Discurso de Paulo Sérgio Pinheiro, proferido na Unicamp, dia 11 de outubro de 2022, na entrega do título de Doutor Honoris Causa.

É uma extraordinária sensação receber esse doutorado Honoris Causa, 51 depois do meu doutoramento. Eram os tempos da ditadura militar no Brasil e do exílio. Fui para Paris em 1967, com uma bolsa do governo francês, para estudar na universidade Sciences Po, no Institut d’études politiques. Ali, tomava contato com que contava nas ciências humanas no Brasil e em São Paulo, graças às apresentações de David José Lessa Mattos Silva, ator e sociólogo, meu colega e vizinho de apartamento, na Cité Universitaire, onde morávamos, com quem por isso tenho um débito enorme.

O lugar central era o seminário do Laboratoire des mouvements sociaux, de Alain Touraine, na realidade coordenado pelo mineiro Roberto de las Casas na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na rue Monsieur Le Prince, número 10, onde está o apartamento de Auguste Comte. Professores e pesquisadores ensinando na França ou visitando por ali relatavam suas pesquisas e trabalhos recentes. Também frequentava os seminários do cientista político Nicos Poulantzas, na recém-criada Universidade de Vincennes, após a revolução de maio de 1968, colega de brasileiros como o saudoso Guilherme Lustosa da Cunha, André Villalobos e o próprio David José, que ali defenderiam suas teses de mestrado.

‘Futuro, o que muda a cada instante’, disse Elias Canneti. A revolução dos estudantes em Paris em maio de 1968 e as grandes greves em toda a sociedade francesa. A primavera de Praga. O assassinato de Martin Luther King. E o de Robert Kennedy. O golpe do AI 5 em dezembro de 1968 com a junta militar dos três patetas aprofundando a ditadura no Brasil. Chegada dos americanos na Lua em 1969. Débâcle do gaullismo. Marcos desordenados de uma paisagem na memória.

Defendi em 1971, na Sciences Po, minha tese de doctorat ès sciences politiques sobre o final da Primeira República, num anfiteatro da Sorbonne. No júri, os saudosos meu orientador Serge Hurtig, o grande e digno brasileiro Celso Furtado, e Paul Arbousse-Bastide, membro da missão francesa na USP nos anos 1930 e estudioso do positivismo, que me deram o très bien.

Mas contava planejar o imediato porque a volta estava ali perto. Meu queridíssimo amigo, que conheci em Paris, André Villalobos, o desde sempre eminente sociólogo, com sua clareza, rigor e elegância, ex-vice-reitor desta Universidade, já contratado pela Unicamp, a qual me disse estar recrutando novos professores. Fiquei sabendo que o IFCH havia sido criado graças à aliança de um cientista humanista capaz de lidar com os militares, o reitor Zeferino Vaz, com um filósofo criativo e visionário, Fausto Castilho.

Dizia-me também que o chefe da cadeira de ciência política tinha se licenciado pela Sorbonne em filosofia e formado em ciência política pela antiga École Libre des Sciences Politiques, em Paris, depois Sciences Po. Claro, aceitei o oferecimento do André em me indicar para Fausto Castilho, que concordou em me contratar. Uma semana depois de meu doutoramento em Paris chegava ao IFCH para dar aula pela primeira vez na minha vida.

Toda minha experiência aqui foi marcada por centenas de estudantes e de todos os colegas que encontrei em maio de 1971, ali reunidos por Fausto Castilho. Dele se podia dizer: se conseguiu recrutar reunir toda essa plêiade de professores meus colegas em barracões no meio de um canavial, devia ser uma figura incrível. E era.

Em plena ditadura do AI 5, Michel Debrun, assumindo os riscos daqueles tempos, consolidou na Unicamp um centro de pensamento crítico e alternativo. Fez filosofia crítica e desceu à arena do debate público. Perseguiu a questão teórica da ideologia e da superestrutura fulminando o senso comum na pobreza da imaginação política. Um referencial inundado pela observação da conjuntura, quase sempre localizada na história política.

Entre todos os colegas, foi essencial ter conhecido Michael Hall. Mike é um dos mais completos historiadores da classe operária, imigração, anarcosindicalismo e corporativismo. Domina sempre a bibliografia e conhece mundo afora os arquivos relevantes (já pesquisou em quase todos). Tem formidável generosidade com estudantes e colegas, com os quais compartilha o que descobre, sempre com imenso senso de humor. A história social tem um enorme débito pela opção dele de estar entre nós até hoje, tendo influenciado centenas de estudantes e teses aqui, em outras universidades e no exterior.

Certamente sob sua influência dediquei-me a reconstituir a história do movimento operário na Primeira República, as condições de vida dos operários e das lutas do movimento anarcosindicalista. Nessa pesquisa chamou-me atenção a intensidade da repressão ao movimento operário, que me permitiu alargar o foco para todas as classes populares, primeiro na Primeira República e depois para as situações contemporâneas. Na República, na democracia e sob a ditadura, as classes populares no Brasil viveram submetidas aos maus tratos e torturas por parte dos aparelhos repressivos do Estado. Minha biografia teria tomado outro rumo se não houvera encontrado o Mike.

Afinal, toda pessoa é um elo na grande cadeia de interações, na teia de alegrias compartilhadas e preocupações que nos unem a todos, não importando onde ou quando nossas vidas nos conduzem, com diz a filósofa Regina Rini. Não está o significado de uma vida sempre mudando em conjunção com as experiências e perspectivas, sempre evoluindo em contar com outras pessoas? Talvez nossa única maneira de escapar à falta de sentido da mortalidade seja através de infindáveis conexões com outros, como lembrou Simone de Beauvoir, na Éthique de l´ambiguité em 1947. A experiência que abre a possibilidade do que se chama biografia é construída pelas conexões com outras pessoas. Depois de minha ida para Paris, foi a vinda para a Unicamp que me permitiu ter uma biografia.

Neste momento, ouço a voz do poeta polonês e Nobel, Czesław Miłosz, que pergunta: “Qu´as tu fait, qu´as tu fait de ta vie?

O que você fez com sua vida? vozes clamam

Em vários idiomas reunidos em suas andanças

em dois continentes. O que você fez com sua vida?

O que você fez ?

O tempo em que estive na Unicamp, entre 1971 e 1983, foi o sólido fundamento para tudo que fiz nos quarenta anos depois. A localização do Arquivo Edgard Leuenroth, com Michael Hall, sob a proteção do grande sociólogo Azis Simão e sua aquisição pela Unicamp, com apoio da Fapesp, determinaram minha pesquisa da história social. Em plena ditadura militar, uma universidade estatal adquire o maior arquivo da história operária e do anarcosindicalismo.

A Conferência de história e ciências sociais, em 1975, com apoio de Richard Morse, na Ford Foundation, a primeira conferência desde 1964 sobre autoritarismo, com capa na revista Veja. Na foto, alguns participantes, como os saudosos Juan Linz, Guillermo O´Donnell, estudiosos do autoritarismo e Eric Hobsbawm, nossa referência maior na história social global.

A pesquisa, apoiada pelo ministro da indústria e comércio Severo Gomes, Projeto Imagens e História da Industrialização em São Paulo, em pleno vigor do AI 5. O general presidente Geisel queria entender por que o ministério apoiava tal pesquisa: “Mas general, como estudar a industrialização sem analisar os operários?”, respondia Severo, meio maroto, e lá foi o projeto aprovado. Foi graças a esse projeto que se consolidou o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), na Unicamp (tendo sido um de seus diretores meu saudoso amigo desde Paris, o historiador Marco Aurélio Garcia). Mega exposição de fotos no MASP, sob a curadoria de Ana Luiza Escorel. Dali, além de livros, arquivos, dezenas de teses, saem dois dos mais belos filmes sobre a classe operária no Brasil, Libertários, de Lauro Escorel, tendo sido a première do filme no apartamento do próprio ministro; e Chapeleiros, de Adrian Cooper. Em plena ditadura, um ministro de Estado protegia a história social e das lutas operárias, arrostando censura, inabalável. O implacável carioca (aliás, como eu mesmo ) Nelson Rodrigues dizia numa crônica: não há pior solidão no mundo do que a companhia de um paulista: exceto quando se está com Severo Gomes. A trágica perda do Severo, para tantos de nós, é um vazio sem solução.

Tudo que fiz depois o professor Francisco Foot, com enorme generosidade, já deu conta na sua saudação e não preciso dizer mais nada.

Mas, antes de concluir, quero me manifestar sobre os temas que mais trabalhei a partir da minha vida na Unicamp, a democracia e os direitos humanos. Durante 30 anos houve avanços do Estado de Direito, permitindo alargar a democratização da democracia na esteira da Constituição de 1988. Nesse período, as organizações da sociedade civil, a grande estrela da transição da ditadura para o governo civil, como dizia o saudoso politólogo Alfred Stepan, se consolidaram na defesa dos direitos dos grupos mais vulneráveis

Depois de 2016, a proteção dos direitos humanos sofreu dramático retrocesso. Não somente se eliminaram as garantias constitucionais dos gastos sociais em educação e saúde, como se abandonaram as agendas fundamentais para a proteção de direitos dos negros (hoje, mais da metade da população), dos povos indígenas, das crianças e mulheres, das pessoas LGBTQIA+. Esse desmonte de direitos agride diretamente os valores da democracia.

O resultado concreto foi um crescente estado de mal-estar social, que se traduziu no desemprego e redução da massa salarial, o crescente número de excluídos nas grandes metrópoles, a volta da fome nas periferias, a violência em todas suas expressões, o crescimento do machismo e da homofobia, a retórica fascista que inunda as redes sociais.

Foram restringidos os espaços de participação da sociedade civil nas decisões de governo através do esvaziamento dos conselhos estatais. As universidades no Brasil, especialmente as federais, continuam submetidas a um cerco político, policial e ideológico, negacionista da autonomia universitária, no qual não faltaram decisões arbitrárias na escolha dos novos reitores e nos recursos para essas universidades.

Apesar das ameaças desse cerco à universidade se aprofundar ainda mais, ao mesmo tempo, nesse momento, pode-se abrir uma possibilidade da refundação da democracia. Semelhante àquela que Debrun indicava, no seu discurso de aceitação do título de professor emérito da Unicamp, em 6 de novembro de 1990, em que o saudei a convite do então reitor Carlos Vogt, também querido amigo desde Paris.

Debrun, falando cinco anos apenas após o final da ditadura militar, dizia: “Parece-me hoje (que) a universidade brasileira está pronta a retornar e desta vez vitoriosamente ao papel de intelectual orgânico da sociedade, que ela tentou assumir, mas com pouco sucesso, em outras épocas. Ela teria hoje ao mesmo tempo, por razões internas ao seu próprio desenvolvimento, e por novas condições que se criaram-na sociedade inclusiva, possibilidade de ter um papel político num sentido extremamente amplo, sem referir-se aos partidos (ou aos) sindicatos”.

Debrun aludia ainda ao papel central do intelectual, e, portanto, dos universitários, que devem ajudar a transformação social e política na sociedade “a partir da comunidade acadêmica, dentro da qual ele se situa. Fora isso, ele pode, evidentemente, como indivíduo ter opções políticas diversas, mas, além disso, ele deve, antes de mais nada, agir a partir da própria comunidade, que assim vai se tornar um órgão de mudança”.

Para tanto, precisa estar claro para nós o que é o intelectual. Desde que li as conferências de Jean Paul Sartre em Tóquio, Plaidoyer pour les Intellectuels, antes de maio de 1968, que fiz com que muitos estudantes aqui lessem, ficou evidente a condição do intelectual na sociedade: “O intelectual é, portanto, o homem que toma consciência da oposição nele e na sociedade, entre pesquisa da verdade prática (com todas as normas que ela implica) e a ideologia dominante (com seu sistema de valores tradicionais). É claro, “o intelectual deve trabalhar ao nível do acontecimento para produzir acontecimentos concretos que combatam o racismo ou mostre a violência dos privilegiados em toda sua clareza”. E como fazer isso? “A única possibilidade real de tomar um ponto de vista distanciado do conjunto da ideologia por cima é se colocar ao lado daquela cuja existência mesmo o contradiz”.

Como ouvi Sartre dizer, no grande anfiteatro da Sorbonne, superlotado em maio de 1968 (depois soube que Elias Canetti ali estava na multidão), “a nossa esperança não pode vir senão daqueles que não têm nenhuma esperança”.

Nessa mesma linha, quatro anos antes, o papel dos intelectuais na universidade foi bem definido por Florestan Fernandes, como paraninfo de uma turma da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH, USP) de 1964, no texto A Revolução Brasileira e os Intelectuais: “Ao contrário dos outros agentes sociais, o intelectual deve lidar de modo consciente e inteligente com os elementos de racionalidade que são acessíveis à sua atuação sócia”. Florestan desde muito cedo percebeu que a única forma de compreender a sociedade brasileira era interiorizar o ponto de vista dos excluídos, dos mais desfavorecidos, de se colocar ao lado daqueles que sua existência mesmo lhe dera condições de conhecer. Para tanto, lembrava que “os intelectuais brasileiros devem ser os paladinos convictos e intransigentes da causa da democracia”.

A universidade brasileira se situa numa sociedade onde ainda prevalecem racismo, apartheid contra os negros, genocídio contra os povos indígenas, hierarquização, autoritarismo, desigualdade e concentração de renda. Por isso mesmo a universidade deve desempenhar papel decisivo numa reconstrução da democracia. Cabe registrar a situação estelar da Unicamp na luta contra o racismo, pois, graças à política de inclusão, tem neste ano a maior presença de alunos pretos, pardos e indígenas nos últimos cinco anos.

Além da produção específica em cada área da universidade no seu conjunto, tenho certeza, como propõe Debrun, inspirando-se num conceito de Gramsci, que as universidades poderão cada vez mais desempenhar o papel de um “intelectual orgânico coletivo”, capaz de enfrentar e propor contribuições, com os inúmeros grupos interdisciplinares existentes, para problemáticas como a violência, a saúde, o meio ambiente, a pobreza, tão aviltadas no atual processo de desdemocratização.