Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Organizações apontam risco de retrocesso para direitos indígenas em conciliação no STF

29 Ago 2024, 16:41 indigenas audiencia Foto: Adriano Machado/Greenpeace

Doze organizações e representações que atuam como amici curiae – “amigas da Corte” – no processo que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023 divulgaram uma nota pública em que criticam a condução da mesa de conciliação sobre o tema que ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF), determinada pelo ministro Gilmar Mendes.

As organizações também prestam apoio à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que se retirou da mesa de conciliação nesta quarta-feira (28) por entender que “qualquer negociação sobre direitos fundamentais é inadmissível”.

A mesa de conciliação foi estabelecida no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.582, 7.583 e 7.586, assim como da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, todas elas sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Na nota, as organizações pontuam críticas em relação ao formato e à condução da mesa de conciliação, a começar pelo fato de que as tratativas começaram a funcionar sem que pedidos da Apib fossem sequer apreciados. “Em especial”, destaca a nota, “a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365”.

O julgamento em questão, de repercussão geral, foi concluído em setembro de 2023 e fixou o entendimento da Suprema Corte sobre os direitos constitucionais indígenas. A posição do STF foi diametralmente oposta a diversos pontos que, depois, foram incluídos pelo Congresso Nacional na Lei 14.701. A norma está em vigor desde sua promulgação, em dezembro de 2023.

As organizações apontam que a falta de clareza sobre o objeto da discussão nas audiências de conciliação levam a crer que os direitos territoriais indígenas, reconhecidos como direitos fundamentais pelo próprio STF no julgamento de repercussão geral, podem acabar sendo “negociados e mesmo sofrer retrocesso”.

A nota aponta ainda uma postura intransigente do coordenador das audiências em relação aos representantes indígenas e cita as ameaças de que, sem conciliação, “uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para instituir o marco temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação” pelo Congresso.

“O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional”, afirma o documento.

Apesar das críticas à mesa, as entidades reafirmam a confiança na capacidade do STF em “compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal”, citando o julgamento do RE 1.017.365 como um exemplo de entendimento a ser mantido.

Leia a nota na íntegra:

Nota dos amici curiae sobre a condução da mesa de conciliação que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023

As entidades abaixo relacionadas, todas admitidas como amici curiae nos autos da ADC 87, onde se encontram reunidas as ADI 7.582, 7.583 e 7.586, bem como a ADO 86, vêm externar a sua posição a respeito da condução dos trabalhos, pelo juiz auxiliar Diego Viegas Veras, no âmbito da Comissão Especial instituída pelo Ministro Gilmar Mendes com o propósito de buscar a resolução de problemas “no que se refere ao tema dos direitos da população indígena e não indígena que envolvem o art. 231 da CF e a Lei 14.701/2023”.

  1. A Comissão Especial começou a funcionar sem que questões prejudiciais, suscitadas reiteradamente pela Apib, fossem respondidas, em especial a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no RE 1.017.365. Há jurisprudência tranquila no sentido de que uma lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF nasce com a presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, recaindo sobre o legislador ônus argumentativo que justifique a razão de superação de julgado da Corte, o que não ocorreu.
  2. A audiência inaugural da Comissão Especial, sob o comando do juiz Diego Viegas Veras, começou com a ameaça de que, caso não houvesse a conciliação, uma PEC para instituir o marco temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação. Um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal foi colocado em alto volume, para que não houvesse dúvidas a respeito. O mesmo ocorreu na segunda audiência, onde a postura da condução da mesa foi demasiado intransigente com os apontamentos feitos pelos povos indígenas, reduzindo os questionamentos constitucionais a “questões laterais”.
  3. Na sequência, vários incidentes demonstraram o absoluto desconhecimento do juiz instrutor com a temática posta sob conciliação, ora sugerindo que a Funai teria algum papel de representação dos povos indígenas, ora afirmando que a conciliação seguiria mesmo sem a presença da representação indígena.
  4. Tampouco houve clareza sobre os limites do que seria passível de conciliação, tudo levando a crer que direitos cuja fundamentalidade foi afirmada pelo próprio STF no julgamento do RE 1.017.365 poderiam ser negociados e mesmo sofrer retrocesso.
  5. O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional.
  6. A decisão tomada no dia de hoje, de saída da Apib enquanto movimento de representação nacional e que agrega organizações de todas as regiões do Brasil, é referendada pelas entidades signatárias por duas razões muito básicas. A primeira é que a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A APIB, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582. E a segunda é a própria centralidade que os povos indígenas têm nas questões que lhes concernem diretamente, nos termos da Convenção 169 da OIT. É inconcebível que se discutam seus direitos territoriais sem a presença de povos indígenas.
  7. As entidades signatárias reafirmam a sua confiança no Supremo Tribunal Federal, que soube bem compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal por ocasião do julgamento do RE 1.017.365.

Brasília, 28 de agosto de 2024

Associação Juízes para a Democracia - AJD

Associação Brasileira de Antropologia - ABA

Alternativa Terrazul

Comissão Guarani Yvyrupa - CGY

Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Conectas Direitos Humanos

Comissão Arns

Instituto Alana

Instituto Socioambiental – ISA

Povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

WWF-Brasil