Outro assassinato no campo
17 Jul 2020, 11:14O trabalhador rural Carlos Augusto Gomes, conhecido como Mineiro, foi executado a tiros na semana passada, em São Pedro da Aldeia, região fluminense dos lagos. Um ataque noturno foi realizado por pessoas encapuzadas a serviço de um patrão que tanto pode ser proprietário quanto grileiro das terras em disputa, segundo alegações colhidas no acampamento Emiliano Zapata. Famílias tiveram suas casas incendiadas em ataques sucessivos.
Num Brasil onde a violência se encontra banalizada a tal ponto que episódios como esse ficam ausentes do noticiário, cabe saudar a corajosa visita realizada prontamente ao local por três importantes instituições. Foram colher o testemunho das famílias atacadas a advogada Nadine Borges, que já foi presidenta da Comissão Estadual da Verdade e hoje é vice na Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, Rodrigo Mondego, e Leandro Mitidieri, do Ministério Público Federal.
Situada a poucos quilômetros da charmosa Búzios, a região atravessa valorização imobiliária pela pujança de um litoral que já foi centro da produção salineira e se espraia pelas margens da Lagoa Araruama. Esse potencial é muito divulgado. O que se conhece pouco é o cenário de conflitos e ameaças cercando famílias atiradas na miséria, que ocupam terras improdutivas para gerar alimentos e garantir a própria existência.
Três suspeitos foram presos no sábado, entre eles dois PMs que teriam agido em horário de folga, bem como Matheus Canellas, que se apresenta como proprietário e já tinha ameaçado as famílias com esse tipo de desfecho. Essas prisões despontam como fato positivo num país onde as autoridades passam meses sem reagir, quando não promovem abertamente a impunidade. A Polícia Civil informou que os PMs também estavam feridos e o fazendeiro se trancou em um apartamento jogando pela janela duas armas, resgatadas pelos investigadores – que também apreenderam com ele um capuz, colete e distintivo com escudo da Polícia Federal
As famílias acampadas já haviam sido cadastradas pelo Incra e o Ministério Público Federal concedeu prazo de dez dias para que esse órgão explique sua lentidão em um conflito que se arrasta desde 2008. Não será surpresa se a resposta vier modulada pelo ultradireitista Nabhan Corrêa, secretário nacional de Assuntos Fundiários – homem de confiança de Bolsonaro que já teve força para derrubar um general da presidência do Incra e dirigiu a UDR quando a sigla pregava a violência privada contra as ocupações de terra, especialmente nos latifúndios do Pontal do Paranapanema.
O acampamento Emiliano Zapata não faz parte do MST, que emitiu nota em solidariedade às famílias e ao lavrador executado. É vinculado à Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetagri), que conta com o apoio da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil.
Em nota denunciando a violência, a Comissão Pastoral da Terra registrou: “Vivemos o cenário de aumento dos conflitos sociais em razão da crise sanitária, econômica, social e, sobretudo, crise política, que tem acirrado ainda mais os problemas vivenciados pelos trabalhadores do campo. Além disso, o desmonte de instituições e órgãos de governo que deveriam promover a segurança de todas e de todos, do campo e da cidade, a partir da garantia de políticas públicas, expõe o descaso do Estado com a vida dos trabalhadores rurais”.
Ao nascer, em fevereiro de 2019, a Comissão Arns enfatizou que seu objetivo era dar visibilidade e seguimento jurídico, em instâncias nacionais e internacionais, a casos de graves violações de direitos humanos, propondo-se a trabalhar em rede, de forma articulada com os organismos de defesa já existentes.
O episódio que ceifou a vida de Mineiro pode representar, no entanto, uma chance para que essa atuação em rede consiga garantir proteção às famílias sobreviventes, regularização de sua atividade produtiva na terra ocupada e punição exemplar aos agressores.
A impunidade sempre estimula a multiplicação de violências como essa. Mais ainda no atual cenário político brasileiro, quando das altas esferas do poder emanam discursos de ódio, intolerância e estímulo ao armamento generalizado para que a espiral de violência cresça sempre mais.