"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Petrópolis: urge processar governador, secretários e prefeito

Paulo Sérgio Pinheiro 21 Fev 2022, 10:40 17fev2022-populacao-trabalha-na-remocao-dos-escombros-no-morro-da-oficina-em-petropolis-rj-1645124797857_v2_450x450.jpg-reuters.webp

Pensão Geoffroy. Onde meus avós maternos e meus pais se hospedavam, em Petrópolis. Fotos mostram minha avó Olga, e amigos, em poltronas de vime na varanda da pensão, nos anos 1930. Na mesma varanda, nos anos 1940, sua filha, minha mãe, Zilah, segura de pé um bebê enorme, eu.

As dolorosas cenas da destruição de Petrópolis – triste paradoxo! – trouxeram à minha memória também os bons momentos na Pensão Geoffroy. Em 1928, a hospedagem na rua Marechal Deodoro,143, já constava em uma lista de hotéis da cidade. Achei um cartão postal do monumental casarão, no muro pintado “Pensão Geoffroy”, com a varanda daquelas fotos de minha família. O segundo andar dando para o jardim interno, descrito pelo poeta Manoel Bandeira – hóspede da pensão nos anos 1920 – em seu livro Libertinagem: “No meu poeminha Pensão Familiar falo do jardinzinho interno da Pensão Geoffroy, em Petrópolis, onde só havia pobres flores e arbustos mais comuns – dálias, marias sem vergonha, trapoerabas”.

Pensão Geoffroy

O casarão havia sido a sede da Fazenda Córrego Seco. Até a construção do palácio imperial, Pedro II ali se instalava durante o verão, nos anos 1840. Em 1874 – na então Rua (princesa) Januária, depois da República em Marechal Deodoro – virou Hotel Mac Dowell, Hotel Inglês e Pensão Geoffroy, até a demolição do prédio nos anos 1940. O mesmo Bandeira, na “Crônica de Petrópolis”, registra: “Chego aqui, ponho em dia o sono atrasado e na manhã seguinte saio a pé para ver o que há mudado na cidade (...) Desço pela Avenida Quinze, subo pela marechal Deodoro, e zás, levo um soco nos olhos: derrubaram o edifício da Pensão Geoffroy!”. Por muito tempo terreno baldio, ali foi construído o pavoroso edifício Pio XII, que sobrevive.

Desde a Pensão Geoffroy, todo mês de julho subíamos, até meus quinze anos, para a serra em Petrópolis, e não me lembro onde ficávamos. Tenho uma foto, eu com dois anos, com meu pai Álvaro, numa quadra de tênis, no hotel Quitandinha, construído a partir de 1941 para ser o maior cassino hotel da América do Sul. Mas, em 1946, decretada a proibição do jogo no Brasil, sobreviveu ainda como hotel. Depois de 1950, íamos quase sempre para o Hotel Fontes, em Itaipava, à beira do rio Piabanha, nas terras do castelo construído nos anos 1920 (pelo escritório de Lucio Costa) para o Barão Jaime Smith de Vasconcellos, que só víamos de longe. Mesmo que ficássemos em Itaipava, o maior atrativo era ir a Petrópolis.

Impossível não pensar em como estarão marcos icônicos da minha infância diante da tragédia das chuvas. A catedral, a cripta com os túmulos de Pedro II e D. Teresa Cristina, a Av. 15 de novembro com o rio no meio, o mágico Palácio de Cristal, a Casa d´Angelo, confeitaria fundada em 1914 com seus famosos caramelos, as vilas na avenida Koeller, o Palácio Rio Negro, a casa de Santos Dumont, as malharias com suéteres que meu irmão, Pedro Carlos, e eu tínhamos de envergar todos os invernos.

As memórias em sépia, no entanto, são sobrepostas pelas cores dramáticas da realidade das chuvas torrenciais, dos desabamentos, dos corpos, da solidariedade que tenta reduzir o sofrimento dos sobreviventes. Na noite de 20 de fevereiro, já eram 176  mortes. Mais que o dobro do registrado em 2011, 73 mortes também decorrentes das chuvas; em toda a região Serrana, a catástrofe deixou mais de 900 mortos e foi considerada o maior desastre natural da história do Brasil até então.

No pano de fundo, estão a improvisação no salvamento das vítimas, a precariedade na busca de sobreviventes sob os escombros, o despreparo das equipes de resgate, os reduzidos efetivos de bombeiros, o desespero de familiares que cavam os escombros com as próprias mãos, sem nenhum instrumento moderno de localização de soterrados, a não ser poucos cachorros farejadores.

O governador do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, reconheceu que um terço da verba (cerca de R$ 500 milhões) destinada à construção de moradias, contenção de encostas e limpezas dos leitos dos rios principais não foi aplicado. O município de Petrópolis deveria ter recebido 3.250 unidades habitacionais e apenas 1.025 foram entregues. Dos R$ 402,85 milhões que deveriam ter sido investidos em 2021, apenas R$ 167,28 milhões foram executados. A Secretaria Estadual de Obras do Rio de Janeiro viveu 15 anos subjugada por uma organização criminosa, especializada em fraudar licitações, superfaturar material de construções, inclusas aí as obras para encostas na região Serrana, tendo desviado R$ 4 bilhões. Prefeitos e vereadores, faz anos, têm incentivado a ocupação dos morros da região, distribuindo terrenos em áreas de risco, sem escritura nenhuma, desde que transferissem o título eleitoral para Petrópolis

Diante desses fatos, fica comprovada inequivocamente que a responsabilidade por essa destruição de vidas e moradias, pela devastação da cidade de Petrópolis, pelos feridos e desaparecidos, é do governador do Estado, de secretários de estado, prefeito e vereadores.

Não bastam apenas lacrimosas notas de denúncia e nos solidarizarmos com as vítimas. Temos de exigir que o Ministério Público Federal e Estadual investiguem as responsabilidades concretas dessas autoridades, processando as criminalmente e civilmente de modo que sejam obrigadas a pagar reparações para as famílias das vítimas. Eis a única forma de impedir que a destruição total de Petrópolis seja, afinal, consumada

Foto: Ricardo Moraes/Reuters