Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Programa de Direitos Humanos faz 25 anos sob ataque

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Por Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo - 06 de junho de 2021 | 05h02

BRASÍLIA - Sob revisão pelo governo de Jair Bolsonaro, a política brasileira de direitos humanos completa 25 anos. Entre maio e junho de 1996, o jurista José Gregori divulgava e implantava o Programa Nacional de Direitos Humanos. As bodas de prata do primeiro PNDH do País ocorrem num momento marcado pela maior crise de imagem do Exército no período democrático, pelo avanço das milícias nas cidades e pela operação da Polícia Civil na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que resultou em 28 mortos.

A revisão do programa é feita pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que informou que oferecerá “recomendações para o aprimoramento” da política de direitos humanos.

O PNDH foi parte de um conjunto de ações impactantes na relação entre o Estado e a sociedade civil, como a reparação de famílias de vítimas do regime militar (1995), a tipificação do crime de tortura com penas severas (1997), a transferência para a Justiça comum dos crimes dolosos praticados por policiais militares (1996), a proteção de testemunhas de crimes cometidos por agentes legais (1999). As medidas tomadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso ajudaram a consolidar a transição ao regime democrático e o poder civil na política. A criação da pasta da Defesa, com um comando civil, em 1999, viria na esteira das mudanças. Agora, mais de duas décadas depois, sobram movimentos contrários. Na última quinta-feira, o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, atendeu pedido de Bolsonaro para não punir o general Eduardo Pazuello pela presença em ato político. O fantasma da indisciplina também ronda os quartéis das polícias estaduais, com ameaças de motins.

“Hoje, os governadores da oposição têm que lidar com delicadeza com os PMs, porque já houve motins, e o presidente os estimula. As Polícias Militares são forças de oposição aos governadores que não são da base governamental. Isso é a desmontagem do Estado Democrático de Direito que surgiu com a Constituição de 1988”, afirma o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, 77 anos, um dos responsáveis pela concepção do PNDH. "O coroamento do retrocesso das violações dos direitos humanos é justamente esse risco de os militares da ativa se envolverem em manifestações políticas. É um momento gravíssimo."

Militante dos direitos humanos, negra e feminista, a advogada Priscila Pamela dos Santos, de 38 anos, destaca um retrocesso. “Subestimamos um pouco o potencial lesivo dele (do presidente) e não estávamos preparados para lidar com essas avalanches de retrocesso”, afirma. Na presidência da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo, ela ressalta, porém, o contraponto feito pelas entidades da sociedade civil. “Muitas das proteções ainda se dão em razão das instituições não governamentais de proteção aos direitos humanos que veem práticas ilegais e denunciam. Essas instituições alheias ao governo fazem as vezes de trabalho do governo federal.”

Os riscos de retrocesso especificamente na área de direitos humanos podem ser neutralizados pelos avanços do sistema e da rede de proteção, que envolve do terceiro setor às altas instâncias do Judiciário. A avaliação é de quem há quase três décadas concebeu e viu fermentar o PNDH. O ex-secretário nacional de Direitos Humanos e ex-ministro da Justiça José Gregori, de 90 anos, avalia que o plano tem solidez. “Os direitos humanos já penetraram de tal maneira no Brasil como conceito que ainda existe um ministério. O que fizemos, depois da redemocratização, foi uma coisa apartidária”, disse ao Estadão. “A gente conseguiu que os direitos humanos resistissem, como tem resistido até agora, a um governo que tem visão totalmente depreciadora.”

Designado pelo então presidente Fernando Henrique, José Gregori coordenou o programa que seria anunciado em 13 de maio de 1996 - após traumas nacionais como os massacres de Eldorado do Carajás (abril de 1996) e do Carandiru (outubro de 1992). Foi o primeiro programa para proteção e promoção de direitos humanos da América Latina, fruto de uma série de ações políticas e legislativas que vieram sendo aperfeiçoadas a partir do fim do período militar.

“O País avançou razoavelmente na questão dos direitos políticos, mas a violência contra os mais pobres precisa ser contida sempre. As desigualdades são grandes entre nós e isso preocupa, chegando a limitar os efeitos positivos da democracia”, disse Fernando Henrique à reportagem. “Ainda que os efeitos das políticas que implementamos tenham sido positivos, na questão de direitos humanos convém estarmos sempre alertas, reavivando as boas práticas.”

As providências foram aceleradas pela Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993. Liderada pelo Brasil, ela reafirmou a natureza universal dos direitos humanos e forçou o governo a avançar. O PNDH foi consequência. A partir dele, o Brasil ficou obrigado a proteger não somente os direitos humanos definidos nas Constituições federal e estaduais, mas também os expressos nos tratados internacionais.

Relator das duas primeiras versões do programa nacional (1996 e 2002) e revisor da terceira (2009), Paulo Sérgio Pinheiro acredita que a maior parte do trabalho de proteção aos direitos humanos que fez o Brasil ser reconhecido por organismos internacionais está sendo desperdiçado. “O governo de extrema-direita foi o retrocesso mais patente de tudo o que construímos. Veja a questão da população negra, da luta contra o racismo, a criminalização da tortura. Ele celebra um torturador, faz defesa de execuções extrajudiciais, tem bandeira antifeminista. A ministra Damares é do anti direitos humanos”, salientou.

Artífice de um movimento pró-direitos sociais, culturais, políticos e econômicos, Pinheiro afirma que, na elaboração de seus relatórios, governo e oposição trabalharam em conjunto. Hoje, as diferenças não permitem que os dois lados, ao menos até aqui, falem a mesma língua para revisar o plano.

Com vasta experiência na Organização das Nações Unidas (ONU), Pinheiro é consultor de direitos humanos e carrega no currículo relatorias importantes. Mais recentemente, experimentou um pouco do autoritarismo que vem ajudando a combater no Brasil e no mundo. Foi incluído em um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça para colocar na mira servidores e professores universitários antifascistas. Ele se orgulha do adjetivo, mas diz que a arapongagem poderia ter o trabalho poupado se buscasse na internet as pesquisas que desenvolve há anos. No prefácio da primeira edição do PNDH, está expresso que a promoção dos direitos humanos há de servir para resolução de problemas estruturais como os causados por desemprego, fome, dificuldades do acesso à terra, à saúde, à educação e concentração de renda. Pinheiro ressalta pesquisas que mostram como tortura e pena de morte vieram perdendo espaço para a educação na percepção dos brasileiros como solução para a segurança. Contudo, ele compartilha a sensação de que uma máxima contrária se consolida, a de que “direitos humanos deveriam ser para humanos direitos, e não para bandidos”.

A explicação, diz ele, está na "imaturidade" democrática. “Não houve uma efetividade na instalação da democracia. Confesso que nós nos enganamos. Achei que depois da Dilma (Rousseff) estávamos avançando com velocidade de cruzeiro. Superestimamos a consolidação da democracia. E confesso que tudo o que estudei não ajudou a prever que o Brasil seria tomado de assalto por um governo de extrema direita", diz.