Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Retomada de terras indígenas não é apenas um ato de ocupação, mas um processo espiritual

17 Out 2024, 11:08 lagoa rica TI Panambi-Lagoa Rica, do povo Guarani Kaiowá (MS) - Foto: Reprodução de redes sociais

Aos 46 anos, Izaque João Kaiowá tem dedicado sua vida à preservação da cultura indígena no Mato Grosso do Sul (MS). Sua família reside na aldeia Panambi – Lagoa Rica, na cidade de Douradina, território onde o povo Guarani Kaiowá resiste a frequentes conflitos fundiários. Professor e pesquisador, Izaque leciona em cursos de formação de professores Guarani Kaiowá, utilizando uma metodologia específica de alfabetização na língua materna, o que reforça a importância da educação bilíngue para seu povo.

Sua formação acadêmica inclui graduação em Pedagogia e um mestrado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), onde começou a aprofundar seus estudos sobre os rituais e a espiritualidade Guarani Kaiowá, com foco no ritual do milho branco, o Avati Jacaira. Atualmente, cursa doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde continua a expandir essa pesquisa, buscando compreender a complexidade espiritual e cultural envolvida no plantio e colheita do milho branco, considerado sagrado para os Kaiowá.

O ritual do Avati Jacaira vai além de uma prática agrícola. Izaque explica que se trata de uma conexão profunda com a terra e os espíritos ancestrais. O milho branco é visto como uma planta sagrada e seu cultivo está intrinsecamente ligado à manutenção da vida comunitária e espiritual. Izaque explora em sua pesquisa os cantos rituais, como o Jerosy Puku, que desempenham um papel central na continuidade dessas tradições. Esse ritual envolve a purificação e a preparação do milho para o consumo, garantindo sua sacralidade e o equilíbrio espiritual da comunidade.

No entanto, esse equilíbrio vem se tornando um enorme desafio. A realidade enfrentada pelos Guarani Kaiowá é marcada por dramáticas consequências da falta de demarcação de terras. Desde julho de 2023, uma nova onda de violência assolou as comunidades Guarani no MS, especialmente aquelas em processo de identificação territorial. Essas áreas passaram a ser alvo de ataques coordenados por fazendeiros e arrendatários, com apoio de grupos de extrema-direita.

Os ataques incluem desde o uso de agrotóxicos em guerras químicas dissimuladas até táticas incendiárias. Indígenas foram feridos a tiros, sequestrados, e mulheres ameaçadas de estupro. Crianças e adolescentes estão impedidos de frequentar a escola por medo de represálias, e os doentes sofrem racismo e desassistência nos hospitais locais. A situação das retomadas de terras, sob vigilância de jagunços armados, é ainda mais alarmante, pois o acesso a alimentos e água potável depende de doações, agravando as condições de vida nas aldeias.

A área de 12.196 hectares foi delimitada e reconhecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2011 como de ocupação tradicional do povo Guarani Kaiowá, mas o processo demarcatório está estagnado. De acordo com dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há pelo menos 26 propriedades rurais sobrepostas ao território.

Em sua dissertação de mestrado, intitulada “Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi”, Izaque pesquisa a origem e os fundamentos do canto ritual Jerosy Puku, praticado nas aldeias Panambi, Panambizinho e Sucuri'y. Os cantos rituais desempenham um papel crucial na estrutura social e espiritual da comunidade.

Izaque reflete sobre essa realidade em sua pesquisa, destacando que a terra é mais do que um território físico: "A terra é igual ao nosso corpo. Precisa de cuidado. Não é apenas usar". Ele critica a devastação causada pela monocultura de milho e soja, que contamina as águas, os peixes e, eventualmente, as pessoas com o uso desenfreado de agrotóxicos. A pesquisa aponta a importância de rituais como o Jerosy Puku, para manter o equilíbrio espiritual da comunidade e proteger as futuras gerações de anomalias e desarmonias, que, segundo a tradição, podem surgir da quebra desse ciclo sagrado.

A partir desse contexto, explica ele, a retomada das terras indígenas não é apenas um ato de ocupação, mas também um processo espiritual: "O espaço precisa ser retomado pelos espíritos daquele local, onde existia uma floresta cheia de vida, e agora está vazio".

Além de Izaque João, outro pesquisador indígena da aldeia Panambi é Gileandro Pedro Kaiowá, de 35 anos. Formado em Matemática, também atua como professor na UFGD. Em sua trajetória acadêmica e de ativismo, ele denuncia a grave situação das comunidades Guarani Kaiowá na região. Ele ressalta que, embora a Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica tenha sido demarcada, essa demarcação foi posteriormente anulada com base na tese do marco temporal, uma interpretação jurídica que desconsidera a ocupação histórica e contínua dos territórios indígenas.

A luta dos Kaiowá pelo tekoha (território tradicional), conta Gileandro, remonta à década de 1940, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), que intensificou a ocupação das terras indígenas. Desde então, a resistência das famílias Kaiowá se mantém viva, passando pela luta de seus antepassados, conhecidos como te’ýi, e culminando na atual aglomeração da comunidade na porção remanescente de terras em Panambi-Lagoa Rica.

"O projeto indígena do Estado brasileiro sempre foi o extermínio. Nosso dia a dia é insistir em não ser extinto", afirma Gileandro. Ele enfatiza que a terra, para os Kaiowá, é muito mais do que um espaço de sobrevivência física; é um rekohaty, um lugar de pertencimento que não se perde, mesmo após anos de esbulho: "A terra, para nós, é como a casa dos nossos pais. Você nunca perde a conexão com o lugar. O que me move é a minha ancestralidade". Para os Kaiowá, o tekoha representa um espaço sagrado e essencial para manter seu modo de vida, sua espiritualidade e suas tradições culturais, que continuam sendo ameaçadas pela exploração agrícola e pelas políticas de negação de direitos territoriais.