Revisão Periódica Universal (RPU) em direitos humanos: os desafios pela frente
31 Mar 2023, 12:05 Padre Júlio Lancellotti trabalha com população em situação de rua - Foto: Daniel KfouriO Brasil passou pelo 4º ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU), mecanismo de avaliação da situação dos direitos humanos nos Estados Membros da ONU. O relatório, apresentado em outubro de 2022, foi feito pelo governo de Jair Bolsonaro, em cenário de completo desmonte da governança de direitos, com apresentação de dados insuficientes e distorcidos. A interlocução com a sociedade civil, prática comum nos regimes democráticos, não ocorreu no plano internacional. Assim, a RPU do Brasil veio recheada de críticas sobre Estado de direito, liberdade de expressão, autoritarismo, ataques a minorias e desmonte da governança indígena e ambiental.
O assessor internacional da Comissão Arns, advogado Paulo Lugon, realizou uma análise do documento, que já foi adotado pelo governo Lula, com modificações. “Há uma vontade declarada do governo atual de construir um mecanismo de monitoramento. Contudo, permanecem alguns desafios. O primeiro deles é haver uma concepção ampla de Estado para que os esforços não fiquem restritos aos gabinetes de Brasília, mas cheguem no terreno, onde populações mais vulneráveis sofrem as piores violações. É necessário um entendimento federativo neste sentido, para que os três Poderes constituídos, além das três esferas, federal, estadual e municipal, participem do monitoramento”, diz o texto.
Acesse a íntegra do documento em PDF
Fim do ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Brasil
Restam os desafios de maior conhecimento do mecanismo e implementação das recomendações.
Por Paulo Lugon, assessor internacional da Comissão Arns
O Brasil passou pelo 4º ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU), que é um mecanismo de avaliação da situação dos direitos humanos nos Estados Membros da ONU, cruzando um período político atípico. Atípico porque o relatório, bem como a sua apresentação, foi feito por um governo autoritário, de completo desmonte da governança de direitos. A interlocução com a sociedade civil, que é uma prática comum nos regimes democráticos, não ocorreu no plano internacional, tendo o governo Bolsonaro apresentando ao mecanismo um relatório com poucos dados, além de distorcidos. Assim, a RPU do Brasil, apresentada em outubro do ano passado, veio recheada de críticas sobre Estado de direito, liberdade de expressão, autoritarismo, ataques a minorias e desmonte da governança indígena e ambiental.
Rompendo uma prática de três revisões passadas, em diferentes governos democráticos, o de Bolsonaro rejeitou de pronto 17 recomendações feitas pelos pares, sobre temas como saúde sexual e reprodutiva, Instituição Nacional de Direitos Humanos e povos indígenas. Internacionalmente, rejeitar recomendações sem mínima consulta a interlocutores nacionais é considerado ato autoritário, principalmente em se tratando de temas sensíveis rejeitados.
A adoção do relatório, por sua vez, já feita no governo Lula, contou com uma escuta, mesmo que curta, por conta dos tempos da própria Revisão, através de ministérios afetos aos temas. Em relatório final, publicado no dia 27 de março, o novo governo expôs sua posição, aceitando 301 recomendações, algumas com explicações específicas. No tocante a duas recomendações sobre “aborto seguro”, o governo brasileiro explicou que este termo se refere ao acesso humanizado e de qualidade a serviços de saúde sexual e reprodutiva, de acordo com a legislação brasileira, incluindo assistência em complicações resultantes de abortos inseguros.
Quanto à recomendação sobre o marco temporal, foi explicado que o Poder Executivo federal tem tido uma atitude favorável à conclusão do processo de demarcações de territórios indígenas e de protegê-los contra ameaças, ataques ou despejos forçados. Ao mesmo tempo, os Pareceres 001 e 763 da AGU, que aplicam na administração pública federal o espírito do marco temporal, ainda não foram revogadas pelo novo governo, mesmo após decisão do STF anulando os efeitos do primeiro parecer. A RPU, um mecanismo que afeta os três Poderes do Estado, incluindo o Judiciário, tem implicações diretas no caso pendente de repercussão geral quanto ao marco temporal.
O Brasil, por fim, rejeitou recomendações para promover a família em seu conceito natural ou tradicional, explicando que tais conceitos estreitos conflitam com decisões do Poder Judiciário e legislação nacional, as quais consideram um conceito amplo de família, sem discriminação de qualquer tipo.
A Revisão Periódica Universal, para ter sua eficácia aumentada, depende de alguns fatores. O primeiro é um processo maior de conhecimento pela sociedade em geral, além da mera efeméride das revisões a cada cinco anos. Ademais, no mundo, e em especial do Brasil, há uma necessidade de monitorar a implementação das recomendações feitas pelo mecanismo.
Há uma vontade declarada do governo atual de construir um mecanismo de monitoramento. Contudo, permanecem alguns desafios. O primeiro deles é haver uma concepção ampla de Estado para que os esforços não fiquem restritos aos gabinetes de Brasília, mas cheguem no terreno, onde populações mais vulneráveis sofrem as piores violações. É necessário um entendimento federativo neste sentido, para que os três Poderes constituídos, além das três esferas, federal, estadual e municipal, participem do monitoramento.
A exemplo da atuação da Comissão Arns, que denunciou nos mecanismos da ONU as diversas chacinas perpetradas pelas PMs, resta ainda o difícil desafio de engajar os governos estaduais, as corporações militares estaduais e suas secretarias de segurança. A sociedade civil brasileira, através do Coletivo RPU, tem apresentado uma prática exitosa a nível mundial de promover a RPU em ciclo contínuo, para além meramente do momento da revisão em Genebra. De maneira semelhante, as esferas governamentais deveriam ter tal postura.
Além do binário governo-ongs, será essencial que a mídia e os comunicadores participem com maior divulgação sobre a importância de uma revisão de tais dimensões, através de debates, escritos, análises de meio-período e outras abordagens criativas. Sindicatos, associações de classes, indústria e demais atores sociais podem pautar seus planos de sustentabilidade através das recomendações feitas ao Brasil, para que a sociedade brasileira, como um todo, caminhe sincronizada para a quitação histórica quanto ao pleno exercício dos direitos humanos, principalmente em relação aos setores mais vulneráveis da sociedade.