"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Subcomitê da ONU para Prevenção à Tortura chega ao Brasil

Belisário dos Santos Jr. 30 Jan 2022, 11:46 presidiarios-do-ceara-fotografados-em-inspecao-feita-pelo-cnj-folhapress.jpg

A tortura sempre foi prática comum em nossa polícia, notadamente nos casos em que eram réus personas não gratas ao regime.

Em defesa de Carlos Marighela, nos idos de 1940, Sobral Pinto chegou a invocar a lei de proteção aos animais, na ausência de respeito ao Código Penal. Quem quiser referências mais antigas veja A Insurreição Negra e Justiça (João Luiz Duboc Pinaud) ou leia Inês Monteiro, de Paulo Anthero Barbosa, falando sobre a São Paulo do século 16.

Entre nós, durante a vigência dos regimes de segurança nacional impostos à América Latina, principalmente desde os anos 1960 e até a metade dos anos 1980, a tortura fez parte das violações cometidas por esses regimes militares e que não constituíram acidentes históricos, fatos isolados ou mero excesso de autoridades arbitrárias.

A comunidade internacional reagiu fortemente a essa prática sistemática e a Assembleia Geral das Nações Unidas, em sessão realizada em Nova York, adotou, a 10 de dezembro de 1984, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Nos termos do artigo 1º dessa Convenção, tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente por funcionário público ou agente de poder para o fim de obter informações ou confissões; castigar alguém pela prática ou suspeita da prática de algum ato; intimidar ou coagir ou exercer discriminação de qualquer natureza.

No âmbito interamericano seria igualmente adotada, em 1985, convenção de igual pretensão em combater e prevenir a tortura.

A Constituição cidadã de 1988, em igual linha de repulsa, considerou inafiançável e insuscetível de graça ou de anistia, entre outros, o crime de tortura (artigo 5º, XLIII).

Já tive oportunidade de depor ante Comissão da Câmara Federal, em 2021, em nome da Comissão Arns, para afirmar que a situação carcerária no Brasil ultrapassou todos os limites. Temos em torno de 700 mil presos segundo dados conservadores, com 250 mil presos mais que o número de vagas existentes, sendo 32% de presos sem condenação. O estado das prisões é dramático. Em termos sanitários, constitui uma punição à parte. Por vezes, se ignora que o preso (a presa) perdeu apenas sua liberdade, não sua dignidade. Além disso, ninguém sabe quem ali governa. Por toda a parte facções criminosas em competição com o Estado (em alguns casos, possivelmente em consórcio) pelo mando. O caos é total e é também total a falta de transparência nas informações das autoridades responsáveis. Há violações sistemáticas dos direitos humanos, como denunciado inclusive ante instâncias internacionais.

Esse panorama, em que se insere fortemente a tortura, levou o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2015, na ADPF 347, a proclamar “estado de coisas inconstitucional” já que “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas”.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) é um instrumento preventivo, com independência funcional. Existe no Brasil e é fruto da Convenção Internacional contra a Tortura e também do Protocolo Facultativo da Convenção, que entrou em vigor em 2006.

O Mecanismo Nacional não é do governo. É um Mecanismo do Estado, que serve à sociedade.

O MNPCT foi criado não só em atenção às normas constitucionais e internacionais, mas também em obediência à Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura.

O extenso rol de atividades atribuídas aos peritos integrantes do Mecanismo, por si, aliado à existência de mandato e outras garantias, incluída sua independência, é indissociável do caráter remunerado do exercício dessas funções e da oferta pelo Estado de condições dignas para o exercício desse trabalho intenso. É contra essas características que o governo federal atentou, por decretos.

Não poucas vezes, o presidente Jair Bolsonaro fez apologia da tortura, desdenhando de sua aplicação a vítimas do regime militar, defendendo sua aplicação em determinadas situações ou prestando homenagem a torturadores reconhecida como tal pela Justiça. Isso é público.

Mas, excedeu-se já a partir de 2019, tentando suspender, por decreto, os trabalhos e a própria eficiência do MNPCT, criado por lei.

Novamente a Justiça suspendeu os efeitos dos atos do governo federal e em 2021, a sociedade civil pressionou a Câmara a revogar, por projeto de decreto legislativo, os decretos presidenciais que tentam desestruturar o sistema legal de proteção contra a tortura.

É nesse momento que, hoje, 30 de janeiro de 2022, o Brasil recebe a visita do Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas. Esse subcomitê tem mandato para visitar Estados que ratificaram o Protocolo Adicional da Convenção contra a Tortura, caso do Brasil, e vem para constatar a violação aos compromissos internacionais brasileiros cometidos contra os objetivos de prevenção e combate à tortura e caracterizados pela desmobilização do Mecanismo Nacional e de seus peritos, em sucessivos atos que vulneraram sua eficiência.

Aparentemente, a imagem do Brasil, já tão atingida por atos deste governo contra o ambiente, contra a saúde, contra a democracia, receberá um novo rótulo negativo, o de país que desmobiliza iniciativas de combate ao flagelo da tortura.

Espera-se do Subcomitê relatório que dê expressão internacional aos atos irresponsáveis e ilegais de um governo federal que atua contra a Constituição e a lei, mas que ao mesmo tempo reafirme a força e a integridade da sociedade civil e de algumas instituições que ainda resistem ao retrocesso.