Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Violência e morte em Valinhos

Paulo Vannuchi 24 Jul 2019, 14:43 valinhos.jpg

A palavra banalização, que Hannah Arendt utilizou para lancetar o nazista Otto Adolf Eichmann e todo o holocausto, pode parecer exagerada no Brasil de 2019. Mas a cada dia se avolumam notícias preocupantes sobre atos de intolerância e crimes de ódio aqui entre nós.

Um bom leitor de jornais ou navegador de internet já está acostumado com fatos violentos envolvendo trabalhadores rurais sem terra no Nordeste, na Amazônia e no tristemente célebre Bico do Papagaio, onde se encontram Tocantins, Pará e Maranhão.

O choque é maior quando a notícia fala da morte – assassinato – do pedreiro Luís Ferreira da Costa, de 72 anos, na charmosa cidade paulista de Valinhos, de tantos condomínios elegantes para gente abastada da região e até de paulistanos que fogem da poluição, do trânsito infernal e do estresse permanente de nossa capital.

Foi o que aconteceu na quinta-feira, 18 de julho, quando manifestação organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) distribuía alimentos e pressionava a prefeitura a fornecer água para 700 famílias do acampamento Marielle Vive, nome da ocupação iniciada em abril de 2018 na Estrada dos Jequitibás, próxima ao núcleo urbano, entre as rodovias Anhanguera e Dom Pedro I.

Sua demanda e seu argumento buscam apoio nos preceitos constitucionais de 1988, que condicionam o direito de propriedade rural ao cumprimento de sua função social, recusando a longa permanência de territórios improdutivos acima do direito à vida com dignidade.

A disputa judicial seguia seus trâmites normais, sendo previsível e mais provável que a jurisprudência predominante terminaria dando razão aos proprietários, sejam eles improdutivos, especuladores imobiliários ou mesmo falsificadores de títulos. O MST terminaria acatando algum mandado de reintegração de posse e pacificamente rumaria para outra beira de estrada. Mais uma foto na bela e triste saga que Sebastião Salgado já retratou com estética espetacular e narrativa de Chico Buarque.

Chocante foi o que se noticiou no fim daquela manhã fria. Um cidadão comum, um banal cidadão comum na reflexão de Hannah Arendt, se irrita com o bloqueio que os manifestantes impunham ao fluxo na estrada. Passo seguinte, engata marcha à ré em sua camionete Mitusbishi Hilux e arremete violento contra os manifestantes, matando o trabalhador idoso e ferindo outras pessoas.

Cabe indagar até que ponto essa fúria homicida reflete de alguma forma um clima de intolerância e ódio que é irradiado, estimulado e reiterado desde as mais altas cúpulas dos poderes governantes?

Os primeiros procedimentos policiais, ao que tudo indica, foram corretos. O assassino foi preso e espera-se que a acusação de homicídio doloso siga até condenação exemplar, desestimulando crimes desse tipo. Quem pesquisar nas redes sociais encontrará vídeo no YouTube com os irmãos do motorista justificando o assassinato na delegacia, pelo fato de que os sem-terra não tinham direito de bloquear a estrada. Também estão registradas nas redes sociais manifestações de que, pudera, o acampamento se chamava Marielle!

No sábado, cerca de duas mil pessoas se reuniram na praça central de Valinhos para protestar e denunciar o episódio, exigindo providências das autoridades. Como em tantas outras vezes, desde Chico Mendes, Dorothy Stang, Corumbiara e Eldorado de Carajás.

No delicado e gravíssimo momento da vida brasileira atual, em que altas autoridades fazem conclamação à intolerância e defendem o armamento generalizado dos brasileiros para que resolvam na bala as suas pendências, a sociedade civil – em especial os órgãos de imprensa e comunicação – não pode seguir inerte, aceitando de modo conformista a banalização do mal.

Algum observatório poderia ser criado, ou retomado, para medir e denunciar os perigos dessa espiral alarmante? A OAB, com sua nova e promissora direção federal, se disporia a criar uma Comissão/Ouvidoria sobre violações de Direitos Humanos no campo e na cidade? A CNBB e as igrejas evangélicas que seguem pregando o imperativo recebido por Moisés no Monte Sinai – “não matarás” –, aceitam se engajar numa ampla mobilização nacional para dar um basta a esse clima? A ressurreição da velha e boa ABI pode ser uma esperança nesse sentido? O Ministério Público deve se incorporar a esse mutirão pela paz e pelo respeito à vida?

Essas perguntas precisam ser transformadas em ações concretas, com muita urgência.