Violência na escola e mediação de conflitos
27 Fev 2020, 10:49Vídeos chocantes mostram seis policiais militares no interior da Escola Estadual Emygdio de Barros, na zona Oeste de São Paulo, durante o curso noturno do dia 18 de fevereiro. Um festival de violência: espancaram dois adolescentes de 17 e 18 anos com socos, gravatas, pontapés, spray de pimenta, mesmo com eles já imobilizados. E ainda invadiram uma sala de aula, de armas na mão, ameaçando todos os que tentavam filmar a ação ou ajudar os que estavam apanhando.
A violência policial contra jovens pobres e negros, de meios vulneráveis e sempre “suspeitos”, já é bem conhecida. Inadmissível e tragicamente conhecida, haja vista os casos com mortes. O que chama nossa atenção, nesse caso, é o fato de a própria diretora ter chamado a polícia. Tratava-se de um caso sem qualquer perigo para alunos e professores: um aluno que fora desligado por faltas quis voltar às aulas e, ao ser impedido, recusou-se a sair. Ele ainda explicou que faltara porque fazia um estágio à noite e, este tendo terminado, quisera voltar aos estudos. Ou seja: ainda estamos no começo do ano e a melhor solução encontrada pela diretora foi chamar a polícia?
Os dois jovens saíram algemados e, felizmente, houve reação institucional imediata e sensata: da Secretaria Municipal de Educação, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), de entidades de Direitos Humanos.
Ótimo, mas... não restam dúvidas: foi abuso de poder da polícia e um triste equívoco da diretora. Nada, absolutamente nada justificava chamar a polícia e expor toda a escola à violência armada. Cabia-lhe exercer sua autoridade, sim, mas com diálogo e concordância do Conselho da Escola. Foi um caso interno típico, a ser resolvido com escuta, compreensão e, se necessário, eventual punição de acordo com as regras disciplinares acordadas.
Esse caso foi discutido em reunião da Comissão Arns e eu concordei em escrever um texto, ampliando a triste notícia para exemplo do que existe de saída institucional visando ao enfrentamento de tais problemas nas escolas. Trata-se da criação das Comissões de Mediação de Conflitos, já em atividade em São Paulo (Portaria Nº 2.974, de 12 de abril de 2016, que dispõe sobre a implantação e a implementação da Comissão de Mediação de Conflitos – CMC).
Para que se tenha uma ideia dos objetivos da CMC, copio o que apresenta a portaria, a qual parte de “considerandos” que identificam a democracia que defendemos: “O conflito é inerente às relações sociais e todos – crianças, jovens e adultos – podem lidar com eles de forma crítica, reflexiva e transformadora; a necessidade de atuar de forma preventiva nas Unidades Educacionais, objetivando a redução das diferentes formas de violência; a importância de instituir nas Unidades Educacionais a cultura da mediação, integrada ao currículo e ao Projeto Político-Pedagógico; a importância da convivência democrática entre os Profissionais da Educação, educandos (as) e demais membros da comunidade escolar, baseada na cultura do respeito, na valorização da diversidade étnico-racial, de gênero, cultural e no pluralismo de crenças e ideias; o fortalecimento do protagonismo dos (as) educadores (as) e educandos (as) no processo educativo; a importância das organizações democráticas nas Unidades Educacionais como: Conselhos de Escola, Grêmios Estudantis, Assembleias Infantis e Juvenis, Assembleias escolares, dentre outras, mobilizadoras e estratégicas na resolução dos conflitos”.
E a conclusão diz tudo sobre as CMCs: a promoção dos direitos humanos na construção de uma cultura da mediação de conflitos como proposta de uma sociedade mais justa e democrática. Ou seja, tais Comissões inserem-se perfeitamente nos projetos de Educação em Direitos Humanos, há vários anos desenvolvidos em São Paulo e outros estados do país. O Instituto Vladimir Herzog, parceiro da Comissão Arns, responsável por um setor de Educação (e do projeto seminal “Respeitar é Preciso!”), já realizou encontros com representantes de CMC de São Paulo, nos quais muito se discutiu, muito se aprendeu, e eu, pessoalmente, fiquei encantada com os relatos de experiências em curso.
É claro que os problemas de todo tipo nas escolas de uma megalópole como São Paulo são imensos e as formas de violência, mais ou menos explícitas, estão sempre presentes. Por isso insistimos na caracterização da Educação em Direitos Humanos como um processo, e não um currículo. As CMCs fazem parte desse processo, mas sabemos que devem contar com a experiência e o tempo. É preciso, também, estarmos cientes, como educadores, de que as Comissões não foram criadas para se sobrepor aos Conselhos de Escola e muito menos atuar como “tribunal”.
A educadora Ana Lúcia Catão, desde o início participante do projeto “Respeitar é Preciso!”, resume, com muita propriedade, o que se espera do processo: “Trata-se de transformar uma cultura em que eventualmente predomina uma perspectiva legalista, punitiva, formalista, em que a disputa ou o individualismo prevalecem, numa cultura em que a parceria, a informalidade, a corresponsabilidade e a construção de uma ética comum são parâmetros”.
O que queremos, nós defensores de direitos humanos, é justamente criar uma cultura de respeito, no sentido mais forte da palavra, que nos dê a esperança de que os tempos mais do que sombrios que vivemos podem ser enfrentados.
* O Instituto Vladimir Herzog publicou um caderno sobre Mediação de Conflitos na Escola, com texto de Ana Lúcia Catão.