"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

O Brasil não está condenado a um futuro de degradação humana

17 Set 2019, 17:59 zepeda.jpg

A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011, tem como objetivo investigar violações de direitos humanos cometidas no Brasil entre 1946 e 1988 - ou seja, desde a Constituição de 1946, emitida imediatamente após a renúncia forçada de Getúlio Vargas, que abriu o caminho para a chamada Nova República (1945-1964), até a Constituição de 1988, que definitivamente encerrou o período da ditadura militar (1964-1985).

O recém-publicado relatório da Comissão da Verdade estabelece 434 mortes ou desaparecimentos, vários milhares de torturados e muitos outros presos. O presidente Jair Bolsonaro, que disse que o documento de 1.300 páginas era ‘balela’, perguntou retoricamente que credibilidade uma comissão nomeada pela ex-presidente Dilma Rousseff poderia ter.

Em um segundo ato, o presidente substituiu os membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura militar por pessoas em quem confiava. E encerrando este capítulo - que sem dúvida não o último – estão os elogios que Bolsonaro dedicou ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais famosos repressores da ditadura militar brasileira. Bolsonaro o chamou de herói nacional porque ajudou a impedir que o país caísse no que a esquerda quer hoje.

Paulo Sergio Pinheiro, professor de ciências políticas da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro de Estado dos Direitos Humanos, é relator de direitos humanos e presidente da Comissão Internacional de Inquérito sobre a Síria da ONU desde 2011. É também ex-coordenador e membro da CNV.

Paulo Pinheiro: Segundo o relatório da Comissão da Verdade, tudo o que o coronel Ustra fez está bem documentado, não apenas pelas vítimas, mas por ele mesmo, que foi há muito entrevistado por meus colegas da Comissão da Verdade. Não há dúvida de que foi um torturador. Ele era um homem de destaque, legalmente ligado ao gabinete do Ministro do Exército, como a Comissão descobriu. Ele não trabalhou no escritório do ministro, mas ocupou uma posição importante dentro do ministério. Ou seja, tudo o que Ustra fez era de conhecimento dos mais altos níveis de comando, desde o Presidente da República até o próprio ministro.

José Zepeda: Esforços para mudar a narrativa da história no Brasil não são novos. Durante a operação da Comissão da Verdade, houve alguns soldados que argumentaram que o golpe era o recurso para impedir tentativas de impor um regime comunista no país. Recentemente, quando o presidente Bolsonaro era deputado, ele fez 56 discursos negando a verdade apoiada em declarações de testemunhas e visitas a centros de tortura.

PP: Eu acho que é uma alegação falha porque a história verdadeira está profundamente enraizada, é a que os documentos provam, a que vive na voz das testemunhas e a que resulta de todas as investigações. Não se trata apenas das conclusões da Comissão da Verdade, mas também do que é contado no livro Brasil: Nunca Mais, promovido pelo cardeal Paulo Evaristo Arns e pelo pastor Jaime Wright em 1985, e até pelo que contém no arquivo do Tribunal Superior Militar, que é a fonte na qual o livro se baseia.

JZ: Parafraseando Tzvetan Todorov, poderíamos dizer que os promotores da busca pela verdade são sempre motivados pelo desejo de testemunhar, lutar contra o esquecimento, registrar a trilha da barbárie dos carrascos e da humanidade de as vítimas. Saber para prevenir. O problema é que quarenta anos se passaram.

PP: Não gosto de dizer que fizemos coisas muito tarde no Brasil. Não é verdade. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, havia uma lei que estabelecia que os crimes cometidos pela ditadura militar são de responsabilidade do Estado brasileiro. Consequentemente, eles precisam ser julgados e as vítimas devem receber reparação. A lei foi promulgada em 1995, apenas dez anos após o fim da ditadura.

JZ: O processo de reencontro com o direito à verdade foi prolongado. Em 1985, foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que estabeleceu inicialmente mais de cem casos de desaparecidos, cujos parentes receberam reparação.

PP: Para entender o valor dos fatos, é importante lembrar que na França os crimes de Vichy, o regime fascista dos anos quarenta, só foram reconhecidos como crimes do Estado francês pelo presidente Jacques Chirac... em 1995! No Brasil, em 2012, foi constituída a Comissão da Verdade, o que não significa que o período de 1985 a 2014 tenha sido um período vazio. Não. Além de Brasil: Nunca Mais, uma enorme quantidade de obras que relatavam as atrocidades da ditadura foram publicadas.

JZ: A Comissão da Verdade da Argentina não teve acesso a documentos do que aconteceu e algo semelhante aconteceu no Chile, Guatemala e outros países.

PP: Já no Brasil, tivemos acesso a doze milhões de documentos do Sistema Nacional de Informação (SIN) depositados no Arquivo Nacional. Também tivemos acesso a toda a documentação do Centro de Informações Estrangeiras (CIEX), órgão vinculado ao SIN, no Itamaraty, integrado nesse arquivo, incluindo os documentos secretos. É extraordinário, acho que nenhum outro Estado latino-americano teve essa possibilidade.

JZ: A causa da busca pela justiça no Brasil sofreu uma derrota retumbante em abril de 2010, quando o Supremo Tribunal rejeitou o pedido da Ordem Nacional dos Advogados - por 7 votos a favor e 2 contra - revisão da Lei da Anistia que perdoou os crimes cometidos durante a ditadura. O pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, foi preso pela ditadura em 1974. O presidente Bolsonaro, em suas críticas à OAB, disse: “Se ele quiser saber como o pai morreu no período militar, eu conto”. E adicionou: “Ele não vai querer ouvir a verdade”. Esse é o tom, essa é a forma.

PP: A Comissão da Verdade do Brasil, como as outras 46 de que tenho conhecimento, não tem poder judicial. Não é um tribunal. Por isso, são injustas as críticas de que o trabalho realizado pela Comissão não tem utilidade porque ninguém foi condenado, uma vez que a responsabilidade por essa impunidade recai sobre o Supremo Tribunal Federal, que confirmou que a Lei da Anistia que impede que agentes da ditadura sejam processados e condenados.

JZ: Segundo esclarecimento. As ditaduras militares na América Latina sempre disseram que as violações dos direitos humanos, incluindo tortura, são simplesmente excessos e não políticas estatais. Ou seja, seriam exceções, em alguns aspectos lógicos, em tempos turbulentos. Mas o caso brasileiro é diferente: tormentos são justificados com convicção, como se a tortura fosse um recurso digno para combater os oponentes. É por isso que muitos dizem que estamos à beira de um regime fascista.

PP: Na Comissão da Verdade, demonstramos claramente que havia uma cadeia de comando, desde o topo até o torturador. Não foram excessos: tortura, sequestros, desaparecimentos, assassinatos eram políticas do Estado. Um exemplo: a Comissão provou que a política de extermínio dos membros das guerrilhas do Araguaia, às margens do rio Araguaia, entre 1967 e 1974, foi uma decisão tomada pelos generais Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, então presidentes da república.

Cabe ressaltar que a questão da verdade sobre as práticas de tortura não tem sido de interesse nacional no Brasil, como no Chile, Argentina e Uruguai. No Brasil, a maioria da população não sabe o que aconteceu. E provavelmente essa ignorância pode ser atribuída aos 30 anos de governo democrático, nos quais não foi possível fazer com que um drama desse tipo alcançasse a consciência nacional.

O que você está se referindo não é a voz do povo, é a expressão de setores militares - acho que a maioria - e o grupo que conquistou o poder graças a Bolsonaro. As pessoas em si não estão envolvidas neste debate. Claro, existem pessoas da extrema direita que apoiam o que o atual regime diz e faz.

JZ: A situação é séria e perturbadora. No Brasil, a ditadura não foi branda, como alguns sugerem. Os números de mortos e desaparecidos não passam de 500 porque nem todas as classes sociais estavam representadas entre as vítimas. É por isso que a reivindicação do direito à verdade vem da esquerda e dos setores democráticos - das camadas pobres da população.

PP: Uma anedota. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso o projeto para a criação da Comissão da Verdade, todos os ex-ministros de Direitos Humanos, para incentivar a votação do projeto, foram ao Congresso Nacional se reunir com o presidente da Câmara dos Deputados. Deputados e também o ex-presidente José Sarney, então presidente do Senado. Quando nos despedimos, ele me deu um abraço e disse: "Paulo, não haverá problemas aqui". Ele estava se referindo ao Senado, no qual a presença de conservadores era muito numerosa. Essa é uma característica notável: no Brasil, foram os setores da centro direita e do centra esquerda, é claro, com o apoio da esquerda, que aprovaram o projeto da Comissão da Verdade no Congresso.

JZ: É claro que o que se ouve hoje não é representativo da classe política brasileira. É a voz daqueles que estão no poder. Agora, gestos como exaltar um torturador, não representam um perigo para a democracia brasileira?

PP: É, de fato, um dos perigos. Existem vários riscos muito sérios em termos de racismo, antifeminismo, homofobia e toda a política rígida que conduz à violência na segurança.

Nos anos 1990 e 2000, coordenei em São Paulo uma pesquisa para o Centro de Estudos da Violência. A maioria dos entrevistados se declarou contra a tortura, embora 45% fossem favoráveis. Com a questão da pena de morte, os números obtidos foram semelhantes. Então, quando os setores que favorecem o pulso firme estão no poder, a tortura de alguma forma tem esse apoio popular.

Agora, se perguntarmos hoje quais são as medidas necessárias para combater o crime, a primeira preferência seria a educação - o que mostra que a sociedade brasileira não está condenada a um futuro de degradação humana.

JZ: Quando as pessoas sofrem algum infortúnio ou são vítimas de uma tragédia, geralmente olham para o céu e exclamam: Por quê? Agora olho para o chão para exclamar algo semelhante: como é possível que isso esteja acontecendo em um dos países mais relevantes da América Latina?

PP: Se você consultar o Latinobarômetro, verá que há alguns anos - e não apenas este último - a democracia não é vista como o melhor sistema de governo. Nesse sentido, pesquisas mostram que o Brasil é um dos países que está na pior posição. Essa realidade indica a necessidade de realizar uma análise crítica dos 30 anos de experiência democrática. No entanto, eu me recuso a realizar essa tarefa agora, porque acredito que não é hora de questionar as conquistas democráticas. O que posso dizer é que o Brasil é um país profundamente racista, muito desigual e altamente conservador. Por quê?

Primeiro, os 30 anos de governo democrático não foram capazes de acabar com os excessos da polícia militar. Infelizmente, o Brasil é o país onde mais pessoas são mortas pelas políticas militares.

Segundo, não foram capazes de mitigar a desigualdade de forma real. Durante os governos democráticos, os ricos tiveram enormes vantagens e aumentaram sua riqueza mais do que qualquer outra classe social.

E terceiro, eles não foram capazes de combater eficientemente o racismo. É verdade que os governos de FHC, Lula e Dilma iniciaram políticas afirmativas sobre os direitos dos negros. Isso não existia no Brasil. Houve esforços muito positivos, como bolsas de estudo para pessoas de ascendência africana. Bolsas de estudo, por exemplo, para entrar no Ministério das Relações Exteriores, onde havia apenas brancos, graças aos quais agora temos alguns embaixadores negros, depois de 130 anos de vida republicana.

Nesse contexto de país racista, injusto e violento do aparato estatal, não deveria surpreender que propostas autoritárias, em tempos de séria crise econômica, tenham uma importante recepção momentânea por parte da população.