"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Paulo Sérgio Pinheiro: sem perspectivas de sociedade solidária no Brasil pós-pandemia

3 Jul 2020, 11:14 psp-onu.jpg

Por José Pedro Soares Martins

Portal LongeviNews

No dia 10 de março de 2020, o presidente da comissão independente internacional da Organização das Nações Unidas de investigação sobre a guerra na Síria, Paulo Sérgio Pinheiro, apresentou relatório perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU, sediado em Genebra. Dois dias depois a representação das Nações Unidas na cidade suíça estava fechada, no início das precauções contra a Covid-19. O episódio ilustra como a própria ONU foi atingida em cheio com a escalada avassaladora da pandemia. “O Sistema das Nações Unidas está enfrentando e vai enfrentar dificuldades, mas continua e continuará atuando na defesa dos povos”, diz Pinheiro, em entrevista exclusiva para o Portal Longevinews.

Pinheiro é um experiente participante do Sistema das Nações Unidas. Foi por exemplo Expert Independente do Secretário-Geral para o Relatório mundial sobre violência contra a criança e relator de direitos humanos para o Burundi e Myanmar, entre outras funções. Para ele, algumas instâncias da ONU estão se destacando no combate à pandemia. “A Organização Mundial da Saúde está se mostrando à altura do enorme desafio”, comenta.

Cita também a atuação de lideranças como a chilena Michelle Bachelet, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. No início de junho, Bachelet emitiu comunicado alertando que descendentes de africanos e outras minorias étnicas sofrem mais com a pandemia em países como Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos. Ela pediu ação urgente para a proteção desses grupos sociais, citando o caso do estado de São Paulo, onde os negros têm 62% mais chance de ir a óbito por Covid-19 do que pessoas de cor branca.

Além dos impactos da Covid-19, por si mesmos gravíssimos, Pinheiro observa que a queda nas doações, por iniciativa do presidente Donald Trump e outras lideranças do espectro de extrema-direita, também afeta ações do Sistema das Nações Unidas. No dia 29 de maio, Trump anunciou que estava rompendo com a OMS e reiterou as ameaças de cortes no financiamento norte-americano para a Organização. Após a posse de Trump, os Estados Unidos já deixaram a Unesco e o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Trump igualmente já tinha anunciado o corte de verba para a agência das Nações Unidas que cuida de refugiados palestinos.

“Há países virtuosos, como a Alemanha, sob a liderança de uma cientista (a chanceler Angela Merkel é doutora em Química Quântica), ou como a Nova Zelândia, de ação muito eficiente contra a pandemia. Mas também há países com lideranças que não estão à altura dos desafios atuais”, destaca Paulo Sérgio Pinheiro.

Inquietação com o Brasil

\ Um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Paulo Sérgio Pinheiro é um grande estudioso da realidade brasileira. E manifesta muita preocupação com a situação do país perante a pandemia. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro é uma dessas lideranças que estão na contramão dos avanços civilizatórios.

\ “A pandemia reiterou os contrastes na sociedade brasileira, a extrema concentração de renda. Os mais pobres, os negros, são os mais atingidos. E também temos um governo fascista de extrema-feira que é negacionista da ciência”, comenta o especialista, que foi ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso.

\ Pinheiro lembra que, depois de relativizar as consequências da Covid-19, que chamou de “gripinha”, o presidente Bolsonaro estimulou, mais recentemente, que seus partidários invadissem hospitais para filmar supostas alas vazias. “É de uma enorme perversidade”, resume.

\ Profundo conhecedor do sistema internacional de justiça, Pinheiro se mostra cético quanto a um eventual julgamento de Bolsonaro em instâncias como o Tribunal Penal Internacional. Entende, entretanto, que o Congresso Nacional brasileiro emitiria “uma mensagem poderosa” se deflagrasse um processo de impeachment do presidente da República.

\ Está cético, igualmente, quanto a uma possível sociedade solidária, mais generosa, em terras brasileiras pós-pandemia de Covid-19. “Como dizia Darcy Ribeiro, temos uma população maravilhosa e uma elite predatória, que se beneficia de uma das maiores concentrações de renda do mundo, além de estimular um racismo que continua evidente nas vítimas da pandemia”, resume.

\ “Como é possível falar em isolamento social se tantas pessoas moram em condições desumanas, sem esgoto?”, pergunta Paulo Sergio Pinheiro, sempre indignado, sempre atento aos direitos dos mais vulneráveis, e que agora integra, com outros expoentes, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. A Comissão que leva no nome o tributo ao ex-cardeal-arcebispo de São Paulo é integrada por alguns dos personagens que há anos se destacam na luta pelos direitos de cidadania.

\ Com a participação de Paulo Sérgio Pinheiro, a Comissão Arns tem se manifestado em vários momentos sobre a pandemia. Caso da Nota Pública de 21 de abril, em apoio à Resolução Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A Resolução exorta os governos do continente a proteger os segmentos mais vulneráveis à pandemia, como os idosos e os mais pobres. A CIDH também pede: “Nas circunstâncias atuais, constitui um dever que as autoridades do Estado informem a população e, ao pronunciar-se a respeito, devem atuar com diligência e contar de modo razoável com base científica”.

\ Especificamente sobre os idosos, a Resolução da CIDH assinala que eles deveriam ser incluídos prioritariamente “em programas de resposta à pandemia, especialmente no acesso aos testes COVID-19, tratamento oportuno, acesso a medicamentos e cuidados paliativos necessários, garantindo que dê seu consentimento prévio, completo, gratuito e informado e levando em consideração as situações dos indivíduos, como pertencer a povos indígenas ou afrodescendentes”.

\ A CIDH também exorta os governos das Américas a “tomar as medidas necessárias para prevenir infecções por COVID-19 da população mais idosa em geral e em particular aqueles que moram em residências de longa permanência, hospitais e centros de detenção, adotando medidas de ajuda humanitária para garantir o fornecimento de alimentos, água e saneamento e estabelecer espaços de recepção para pessoas em extrema pobreza, rua ou abandono ou situação de incapacidade”.

\ Nesse contexto, continua a Resolução da CIDH, os governos devem “fortalecer as medidas de monitoramento e vigilância em relação à violência contra idosos, dentro da família, em residências prolongadas, hospitais ou prisões, facilitando o acesso a mecanismos de reclamação”.

\ Ao lado de Pinheiro, estão na Comissão Arns que manifestou o apoio à Resolução da CIDH, entre outros, os advogados José Carlos Dias, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato e José Gregori, o pensador indígena Ailton Krenak, a educadora Claudia Costin, a jornalista Laura Greenhalgh e o filósofo Vladimir Safatle. A Comissão Arns dá prosseguimento, de alguma forma, à Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, que atuou entre 1983 e 2016 e da qual Paulo Sérgio Pinheiro também fez parte. Ele continua atento e vigilante, à situação dos direitos humanos no Brasil e no mundo, que agora passam por um de seus mais graves desafios coletivos.