"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Dom Paulo e a Comissão Justiça e Paz

Maria Victoria Benevides 12 Out 2020, 9:44 d.paulo-rosa.png

Nossa Comissão Arns ainda não completou dois anos, mas deita raízes nos anos 1970, em plena ditadura civil-militar, iniciada com o golpe de 1964. Sim, somos “descendentes” dos grupos de defesa dos direitos humanos como a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, esta criada e liderada com a coragem lúcida e serena de Dom Paulo Evaristo Arns. Outros movimentos e comissões surgiram depois... e nós cá estamos, décadas mais velhos, pedindo as bênçãos de Dom Paulo para renovar nossas esperanças em tempos tão carregados.

Agosto de 1972. Os primeiros integrantes da CJP referem-se à “fase das catacumbas”: as reuniões eram realizadas na própria casa de Dom Paulo, pautadas por muitas cautelas. Ali se relatavam os casos de violência, prisão, desaparecimento ou uma simples palavra ouvida dentro de uma cela. Esse método de trabalho foi fundamental e, graças a ele, muitas vidas puderam ser salvas. Segundo Dom Paulo, “era preciso descobrir fontes seguras de informação e delinear estratégias eficazes”.

Seus objetivos eram urgentes e arriscados: socorro imediato a perseguidos; denúncia das torturas e descobrir o nome dos desaparecidos, das circunstâncias do desaparecimento, os locais da prática nefanda, de morte e sepultamento; prevenção do que poderia acontecer aos que colaboravam com as pastorais; relações com entidades afins; luta pela volta do país ao Estado de Direito.

Margarida Genevois lembra: “Com o crescimento dos casos, Dom Paulo me pediu para atender na Cúria. As pessoas chegavam aflitíssimas, pedindo auxilio. Diziam ‘meu marido, meu filho está preso, está sendo torturado, o que faço?’. Providenciávamos advogados, que se desdobravam para obter a proteção judicial possível e ajudar na busca, escondíamos pessoas, encaminhando-as para o exterior, fazíamos denúncias nos organismos internacionais. Às vezes não tínhamos nada a fazer, senão ouvir, chorar junto. Nós os recebíamos sempre com o maior respeito, nunca perguntávamos o porquê de sua prisão ou da de seus parentes. Isso não importava, eram dramas de vida e morte. Na verdade, eu preferia até nem saber porque tinha pavor de ser presa e falar o que pudesse prejudicar; nunca sabemos o limite de nossas forças em situações extremadas” (depoimento a M. V. Benevides, dez/2000).

Daí que todo atendimento era feito em códigos e com todo o cuidado necessário para proteger familiares e também os membros da Comissão, considerada entidade subversiva até 1974. Transformada em entidade civil, com estatuto e personalidade jurídica, tornou-se mais segura, embora não cessassem ameaças anônimas e a constante possibilidade de prisão de dirigentes. Os advogados da CJP defenderam centenas de pessoas e dois de seus presidentes – Dalmo Dallari e José Carlos Dias – chegaram a ser sequestrados e presos.

Com as lutas da sociedade civil pela democratização, a CJP engajou-se em torno da anistia, das campanhas contra a Lei de Segurança Nacional e o chamado “entulho autoritário”, pela Constituinte livre e soberana (lembrar os Tribunais Tiradentes) pela integração latino-americana, pelo amplo apoio aos movimentos sociais. Sempre com o apoio explícito de Dom Paulo.

Sob as luzes de seu amigo Paulo Freire, Dom Paulo incentivou vivamente o que se tornou, a partir dos anos 1980, o projeto Educação em Direitos Humanos, iniciado na rede municipal paulistana.

Gostaria de registrar um dado que julgo relevante: ao contrário da rígida tradição eclesiástica, Dom Paulo valorizou o protagonismo feminino na CJP. Margarida, secretária e depois presidente e presidente honorária até hoje, sempre desempenhou missões importantes, muitas vezes representando Dom Paulo e tomando decisões junto a outras entidades, o que causava imensa surpresa, sobretudo no exterior. Outras mulheres da Comissão e de outras entidades de seu bispado foram igualmente sempre merecedoras de seu respeito, admiração e gratidão.

Tenho muitas saudades de Dom Paulo e de nosso trabalho na CJP – que continua atuante, hoje, sob a presidência de Antonio Funari, um dos advogados dos presos daquela época, ele também ex-preso político. Na Comissão Arns, nestes tempos de “tempestade perfeita” (crise política, sanitária, social, econômica, ambiental, mundial), temos que honrar a coragem de Dom Paulo e sua total dedicação aos perseguidos, aos discriminados, aos vulneráveis, aos cujas vozes não são sequer ouvidas. Que ele nos inspire e nos abençoe, amém.