Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Ministra Damares não calará a sociedade civil

José Carlos Dias, José Gregori, Paulo Vannuchi e Paulo Sérgio Pinheiro 22 Fev 2021, 8:55 damares.jpg

Eram os idos de junho de 1993. O Brasil, depois do fim da ditadura militar, aderira a muitos tratados de direitos humanos. Empenhado em afirmar seu respeito às obrigações assumidas, indicou para chefiar a delegação brasileira à Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, em Viena, Áustria, o ministro da Justiça Maurício Corrêa. Ali presentes numerosas organizações não governamentais (ONGs) brasileiras para participar no fórum Global “Direitos Humanos para todos”.

Havia profundas divergências entre os Estados sobre o que resultaria da reunião. Sinal da relevância do Brasil, o presidente do comitê de redação da Conferência foi o embaixador Gilberto Saboia. Graças às qualidades de hábil e paciente negociador do diplomata brasileiro, a Conferência consagrou na “Declaração e Programa de Ação”, seu documento final, a universalidade, a indivisibilidade dos direitos humanos e a democracia como forma de governo mais favorável para proteger esses direitos.

O Programa de Ação recomendava aos Estados preparar planos de ação nacionais para melhor promoção e proteção dos direitos humanos e que as entidades da sociedade civil participassem na implementação dos direitos humanos em cooperação com os governos.

Iniciado o governo Fernando Henrique Cardoso, assumiu-se como tarefa preparar Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH, com ampla consulta a ONGs de direitos humanos. Em 13 de maio de 1996, foi promulgado o PNDH 1, o primeiro nas Américas e o terceiro no mundo, com ênfase nos direitos políticos e civis. A iniciativa repercutiu em estados e municípios que criaram programas de direitos humanos. Em 2002, alargada a participação das ONGs em todo o Brasil, foi publicado o PNDH 2, sublinhando os direitos econômicos, sociais e culturais. A elaboração dos dois PNDH deve muito ao saudoso e notável cientista político Paulo de Mesquita Neto.

No governo Luiz Inácio Lula da Silva, reafirmada a promoção e a proteção dos direitos humanos como política de Estado, após amplo debate público, com propostas construídas em sucessivas consultas a organizações da sociedade civil e aos governos e conferências regionais em todos os estados, foi revisado e atualizado o PNDH2 e se elaborou o PNDH3. Os três programas exibem clara identidade de enfoque.

O governo da presidenta Dilma Rousseff retomou várias temáticas do PNDH 3, com destaque para a implantação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Nesse esforço, os titulares de direitos humanos dos governos anteriores se uniram para conclamar o Congresso Nacional a aprovar a criação da CNV, objetivo alcançado graças ao apoio suprapartidário.

O anúncio da senhora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de criação do grupo de trabalho (GT) ministerial para rever PNDH3, sem participação da sociedade civil e esvaziando o papel do Conselho Nacional de Direitos Humanos, é gravíssimo retrocesso que preocupa a Comissão Arns.

Os objetivos do GT chapa-branca da ministra são “analisar aspectos atinentes à formulação, desenho, governança, monitoramento e avaliação do PNDH3” para seu “aprimoramento”. Entenda-se por “aprimoramento “ adaptar o programa à pauta bolsonarista, que promove o armamento da população, insiste no negacionismo da pandemia, transgride direitos indígenas e quer abrir seus territórios à mineração, estimula o desmatamento, as queimadas e o envenenamento dos rios na Amazônia, ignora questões de gênero, combate direitos dos LBGTI, nega o aquecimento global, defende o excludente de ilicitude para as corporações militares, promove o esquecimento das torturas, assassinatos e desaparecimentos perpetrados pela ditadura militar. Esse revisionismo, se consumado, será um desastre para a democracia.

A Comissão Arns propõe às entidades de direitos humanos ficarem atentas para impedir, se preciso com ajuda do Judiciário, tais retrocessos. E apela às instituições da democracia a barrarem esse ataque à participação da sociedade civil na política de Estado de direitos humanos.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 21/02/2021