"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

O primeiro dia sem Antonio Carlos Malheiros - um exemplo de solidariedade

Belisário dos Santos Jr. 18 Mar 2021, 9:50 malheiros.jpeg

Malheiros se foi na madrugada de ontem. Deixou a todos nós, seus amigos, atônitos, sem voz, órfãos do nosso irmão mais velho. O sentimento é descrito no célebre Ensaio sobre a Amizade, de Michel de Montaigne, abalado pela perda de um amigo querido: “Já me acostumara tão bem a ser sempre dois que me parece não ser mais senão meio”. Advogado, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor da Pontifícia Universidade Católica. Mestre de direitos humanos. Todos tinham uma história com ele.

Passei o dia recebendo solidariedade de amigos comuns e retribuindo, lendo mensagens e respondendo, porque todos queriam ouvidos ou olhos atentos para contar o que vivenciaram juntos, histórias comoventes umas, outras engraçadas. Assim rimos e choramos na mesma medida.

“Na adoção do meu filho, eu estava insegura. Daria certo? Ele permaneceu ao meu lado, me orientando, sem interferir jamais em qualquer procedimento, mas incentivando com um olhar generoso”, relatou uma famosa advogada no grupo de advogados do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa). De um companheiro da igreja, ouvi: “Ser humano de generosidade inigualável”.

No site jurídico Conjur pude ler, em meio a homenagens não restritas ao meio jurídico, que ao receber a Medalha Anchieta e Diploma de Gratidão de São Paulo, ele agradeceu a todos mas dividiu o prêmio com “aquele menino de 15 anos, da Praça da República”, que saiu da imersão no vício para ser professor da Fundação Getúlio Vargas, após anos de acompanhamento, amizade e oportunidades dadas por Malheiros. “Professor de generosidade”, disse o então Secretário da Justiça. No UOL, li uma sucessão de manifestações de políticos, juristas, que dele diziam ser incansável defensor dos direitos humanos e parceiro nas lutas sociais.

O que diriam os doentes pobres com AIDS que ele não mais visitará? E as crianças internadas com câncer no Emílio Ribas, e depois em tantos outros hospitais, a quem fosse noticiado, que seu contador de histórias predileto – Tio Totó - não voltaria neste ou em outros sábados, como mágico, ou às vezes como palhaço? Essas eram apenas algumas das suas “loucuras”, como ele chamava os seus atos de ética e de humanidade.

Vivi de muito perto uma adoção à brasileira, que após três anos foi regularizada com sentença judicial. O padrinho do Pedro era ele, a quem conheceu com três dias, e acompanhou com carinho os três anos da questão judicial, naquele longe/perto de um juiz ético. Quando falamos pela última vez, em fevereiro, Pedrinho, 10 anos hoje, estava junto. “Se houver alguma homenagem, você me chama? me diz agora ao telefone.

Outro companheiro fortemente ligado à proteção do meio ambiente lembrou dos esforços em relação a esse tema conduzidos pela primeira Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, que teve colaboração fundamental de Malheiros. “Um grande humanista”, disse um desembargador que conviveu com ele, e hoje advoga. Outros amigos lembraram de coisas importantes para cada qual: “Foi à minha posse em Brasília”, “tomávamos café juntos na PUC, entre as aulas”, “a convivência com ele na Comissão Justiça e Paz foi gratificante”. E todos acrescentaram algo sobre as conversas, o humor, a sensibilidade e principalmente o impacto que sempre provocava em quem o ouvia.

Era, de longe, o melhor imitador de Dom Paulo Evaristo Arns, reproduzindo a voz tonitroante e cheia de esperança do nosso cardeal, ao relatar situações vividas no dia a dia com humor, que não escondiam o carinho que todos tinham pelo patrono da Comissão Arns. Outra amiga lembrou que Dom Paulo sabia e gostava.

Com a saudade já no limite máximo, voltei a uma memorável participação do Malheiros no Ted Talks (que recomendo). “Como a solidariedade pode humanizar a justiça?” Ele inicia lembrando de se dirigir aos seus alunos incentivando a leitura de livros de direito, mas sugere a todos ir ao grande livro da vida, à realidade das ruas, das comunidades, aos lugares aonde o povo está, para aprender para que serve (ou pode servir) o direito, a justiça, daí obtendo a melhor forma de ajudar os mais desfavorecidos.

Nessa conversa, conta a história de sua vida, não sabendo ser a última vez, e vai desfilando casos ligados ao direito, à justiça e às imensas possibilidades da solidariedade. A ideia é que nunca desistamos do outro. Conclui, apoiando-se nos livros sagrados, lembrando que salvar uma vida significa salvar a humanidade.

Que frase profética em meio a uma pandemia agravada pela irresponsabilidade. Nunca desistir de alguém e tentar salvar vidas. Essa será a forma de sempre celebrarmos uma vida voltada para o próximo, para os direitos humanos, para a solidariedade. Viva Antonio Carlos Malheiros!