"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

100 anos de ternura e militância

Belisário dos Santos Jr. 9 Mar 2023, 16:27 CA-lancamento-4-margarida-flores-joao-paulo-brito-conectas Presidente de honra da Comissão Arns, Margarida recebe flores no lançamento da comissão, em 2019. - Foto: João Paulo Brito

“Envio-lhes o convite para assistir a reinstalação da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos.” (dezembro de 2020).

Fundada em 1996, desde seu 1º Congresso Brasileiro, realizado em maio de 1997, na Faculdade de Direito da USP, a Rede mostrou sua importância agregando organizações não governamentais na área de educação em direitos humanos e filiando-se à rede latino-americana e dando respostas à indagação: “Por que educar para a cidadania?”.

A retomada da Rede, após a pandemia, é alvissareira, porque os últimos acontecimento, então como agora, mostravam e mostram mesmo quão necessária é a formação para a paz e para a cidadania.

Mas, o extraordinário no convite recebido em 2020 era a grande anfitriã do evento, fundadora e coordenadora Emérita da Rede e ali homenageada: Margarida Genevois, na época, com 97 anos.

E ela acrescentava ao convite a frase: “Estou muito contente de retomar esse trabalho.” Novos projetos é que fazem sua alegria.

Ela sempre diz que chegará aos 100 anos, sem querer chegar. “As circunstâncias me levaram a isso”. Falando do livro imprescindível de Camilo Vanucchi "Margarida - Coragem e Esperança”, ela brinca: “Sou é uma mulher de sorte”.

Desde criança queria “servir”, levar uma vida que fosse importante para os outros (útil, diz ela), uma vida que valesse a pena.

As mulheres da zona rural de Campinas, onde foi morar numa fazenda da Rhodia, com marido e filhos, podem dizer de como Margarida reordenou suas vidas, trazendo médicos para atendimento, criando escolas e construindo uma igreja, clubes e atividades culturais, organizando suas vidas e a solidariedade entre elas. Marca Margarida.

Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, entendeu logo que Margarida era uma ativista dos direitos humanos e a levou para a Comissão Justiça e Paz. Ali, ela conheceu outra faceta da militância. A luta contra a ditadura. Foi, dizem todos, o braço direito de Dom Paulo, no atendimento aos perseguidos políticos, tomando seus depoimentos, denunciando as violações graves de direitos humanos comuns na época do arbítrio. Essa mulher, que mesclava os paéis de socióloga e “advogada honorária”, sabia que a denúncia de uma prisão poderia ser a grande diferença para prevenir a morte ou a desaparição forçada. E foi extraordinária na denúncia das prisões e das mortes e da tortura. Assim, a Comissão Justiça e Paz passou a ter duas sedes: a Cúria Metropolitana e o apartamento da Margarida. Margarida era a faceta feminina de Dom Paulo.

Podemos imaginá-la numa ponte do Pará, enfrentando a polícia, que não queria autorizar o povo camponês da região a homenagear companheiros mortos pela violência oficial. A cruz ainda está lá colocada. Há outras situações iguais a contar.

Participou da gestação do Tribunal Tiradentes, nos anos 1980, que culminou por condenar a lei de segurança nacional. Oficialmente, o Congresso só viria a revogar a última lei de segurança nacional em 2021, por forte pressão da sociedade civil, incluindo a Comissão Arns. Claro, Margarida era e é a presidente de honra da Comissão, inspiradora de todos os seus membros.

Foi presidente da Comissão Justiça e Paz algumas vezes. Lançou a coleção “Direitos Humanos E ...”, a respeito de inúmeros temas fundamentais, sempre sob a perspectiva da interdisciplinaridade da educação em direitos humanos, nas pegadas de Paulo Freire, como fator de transformação social. Educar para os direitos humanos deve ser uma postura do ser no mundo, diz ela.

Atirou-se a atividades de educação para os direitos humanos, como vimos ao início, entendendo que essa poderia ser a alternativa para a militância quando os ventos da democracia soprassem de novo. E com ela a Rede Brasileira mostrou a necessidade de formar professores com esse viés transversal dos direitos humanos. Mostrou e fez. Esse é o jeito da Margarida. Ela faz. Aponta caminhos e os abre.

Numa conversa recente, na Comissão Arns, sobre seu iminente centenário, provoquei: ”Quais são os seu projetos para o futuro?” Ela apenas sorriu. Ainda vejo esse doce sorriso, ao pensar com pena que estarei fora do Brasil na comemoração de seu centésimo aniversário. Gostaria de lhe dizer somente de forma concisa sobre sua vida agitada, indignada contra a injustiça, mudando para melhor a vida de tantos (a minha também): VALEU A PENA!