A polícia só tem a lucrar com um sistema eficiente de controle
22 Set 2024, 11:05 O advogado José Carlos Dias, ao centro, fala na abertura do debate sobre segurança pública. - Foto: Áurea LopesFala de José Carlos Dias no debate Segurança Pública e Domcracia, realizado na PUC SP dia 20/9/2024
Segurança Pública é tema extremamente abrangente, que pode ser abordado sob inúmeras vertentes. Gostaria de usar meu tempo para tratar do tema do controle do exercício da atividade policial.
Polícia é instituição fundamental numa democracia. Nenhum órgão estatal possui tanto poder para intervir na privacidade, na autonomia e na integridade física e psíquica dos cidadãos. Mecanismos devem existir para que essa autoridade seja legitimamente exercida.
Nas últimas décadas, São Paulo apresenta um histórico de avanços e retrocessos na regulamentação do uso da força. No governo Covas, nas gestões dos secretários de segurança José Afonso da Silva e Marco Petrelluzzi (1995-2001), foram adotadas medidas importantes para o controle da violência policial, após os dramáticos anos do governo Fleury, quando, em 1992, se atingiu a estarrecedora cifra de 1470 civis mortos por policiais em serviço.
Dentre as medidas que demonstraram eficácia no controle do uso da força destaco:
. Ouvidoria;
. divulgação de índices de letalidade e de estatísticas criminais;
. programa de acompanhamento psicológico de policial envolvido em ocorrência com morte;
. Comissão para Redução da Letalidade;
. Policiamento Comunitário;
. Controle da discricionariedade policial por meio de procedimentos operacionais padrão.
Em 2013, o então secretário de segurança Fernando Grella Vieira reduziu a letalidade policial adotando medidas voltadas à regulamentação da conduta do policial militar em ocorrências envolvendo lesão grave ou morte, incluindo a substituição do termo “resistência seguida de morte” por “morte decorrente de intervenção policial”. Mas, em 2014, ainda na gestão Grella, os números voltaram a subir.
O problema é que várias das medidas bem-sucedidas na redução da letalidade não tiveram sequência, foram esvaziadas entre uma gestão e outra.
Mudanças nos nomes ou na retórica do comando ocasionam considerável oscilação nos níveis de letalidade, indicando que o controle da polícia ainda não se converteu em política de Estado. As estatísticas de letalidade policial sobem e descem de acordo com ocupantes dos cargos de comando sem relação com as estatísticas criminais, o que é indicativo de abuso. Quando o secretário tem discurso truculento os policiais sentem que não serão punidos.
Hoje São Paulo vive novo retrocesso nessa área. A gestão arbitrária e violenta do atual secretário de segurança Guilherme Derriti é exemplo da polícia que não dá certo. Em poucos meses, foi desmobilizado um bem-sucedido programa de controle de letalidade policial desenvolvido pela própria Polícia Militar, vitimando segmentos mais pobres, sobretudo jovens e negros.
Em 2023, no comando da PM, foram trocados 34 oficiais simpatizantes do uso das câmeras corporais e de menos violência por grupo afinado com a política linha dura do governador Tarcísio e seu secretário Derrite
A experiência acumulada pela PM paulista ensina que o uso de câmeras produziu resultados positivos, entre os quais a redução da letalidade policial, que bateu recorde no primeiro semestre de 2020. Necessário ressaltar que a redução da letalidade policial não resultou em aumento de insegurança. Pelo contrário, houve redução da letalidade policial, e também da taxa de homicídios.
Quem é contra o uso de câmeras nas fardas de policiais é contra a profissionalização das polícias. As imagens monitoradas servem para que os centros de comando possam acompanhar ações em tempo real e assim coibir situações de uso indevido da força, truculência ou corrupção. Constituem também mecanismo para defesa de policiais contra falsas acusações e para reconhecimento de boas práticas. Cidadãos e policiais são beneficiados e protegidos.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) do Ministério da Justiça aprovou recomendação para uso de câmeras corporais pelas polícias em todo o país. Governo federal daria bom exemplo, introduzindo a medida na PF e da PRF.
Necessário também fortalecer os mecanismos de controle da corrupção. Corrupção e investigação são incompatíveis. Vastos mercados ilegais são protegidos por agentes públicos corrompidos. Não há um Estado oficial bom e um Estado paralelo mau. Há um Estado cada vez mais infiltrado pelo crime organizado, por meio de agentes públicos dos três poderes, corrompidos para evitar a aplicação da lei penal e para facilitar atividades econômicas ilícitas. Em qualquer país, o controle da corrupção é um dos maiores desafios no combate ao crime organizado.
Finalmente, ainda na questão do controle, é essencial avançar na regulamentação da atividade política e eleitoral por policiais. Atividade policial não se concilia com atividade político-partidária. É necessário instituir regras de exoneração do cargo para disputa em eleições, evitando a instrumentalização da atividade policial para fins eleitorais. Grupos armados não podem fazer política. Polícia politizada é ameaça ao Estado de Direito. O populismo penal é uma importante vertente do fenômeno global do populismo autoritário. A agenda da segurança é, portanto, uma agenda da democracia.
Há muitos outros temas que poderiam ser abordados. São muitos os desafios a serem superados. É necessário, por exemplo, pensar em uma política nacional de redução de homicídios e em política nacional de combate ao crime organizado, o que pressupõe um papel mais ativo da União na agenda da segurança pública. Crime organizado se combate com inteligência, com ações integradas envolvendo competências da União, dos estados e dos municípios, não com truculência, como ocorreu nas operações da PM, na Baixada santista.
A escolha de Mário Sarrubo para o cargo de secretário nacional de segurança é razão para otimismo. A União deve fortalecer os mecanismos de prevenção e repressão dos crimes federais, fortalecer os mecanismos de cooperação internacional no combate à lavagem de dinheiro e ao tráfico internacional de entorpecentes, fortalecer o controle de armas, propor reformas legislativos no campo da legislação penal e processual penal, produzir e divulgar pesquisas e estatísticas nacionais relacionadas à atividade criminal e ao sistema de justiça, etc.
É necessário também enfrentar o tema prisional, o que passa necessariamente por uma reorientação da política de drogas, responsável por parte significativa da população penitenciária. A restrição de saída temporária de presos e a PEC das drogas representam retrocessos irracionais no campo da segurança pública.
Meu foco hoje foi, contudo, a questão do controle sobre a atividade policial. O debate sobre política criminal é distorcido quando se trata o combate ao crime e os direitos humanos como questões excludentes. A alternativa a uma política legalista na segurança pública é o modelo “Rota na rua”, o modelo da polícia que atira antes de perguntar, em inocentes e culpados. Não há meio termo.
A polícia só tem a lucrar com um sistema eficiente de controle. A eficácia da ação da polícia depende de treinamento, de armamento adequado e de sua capacidade de estabelecer uma relação sólida e positiva com a população.
Não há segurança pública sem participação da sociedade. As experiências bem-sucedidas de redução da criminalidade têm sido aquelas capazes de mobilizar a participação efetiva das diversas instituições e dos cidadãos no processo de identificação e gestão dos problemas. O bom relacionamento com a sociedade resulta em mais prevenção, melhor investigação do crime, maior satisfação profissional e mais segurança física dos policiais.
Política de segurança participativa não se sustenta com polícia corrupta e violenta. Sem honestidade, profissionalismo e transparência a polícia não adquire o respeito e confiança da população. E sem confiança, não há eficiência no controle do crime. Uma polícia que não respeita a lei não é capaz de promover a segurança urbana. Polícia violenta e corrupta é, ao contrário, fonte de insegurança para os cidadãos e para os próprios policiais.