"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Autoritarismo, racismo, violência

Paulo Sérgio Pinheiro 2 Set 2022, 19:02 PSP editado Paulo Sérgio Pinheiro - Foto: Áurea Lopes

Neste momento em que se conclui a 50ª seção Autoritarismo e Pandemia do Tribunal Permanente dos Povos, TPP, importa revermos o contexto no qual se situam a ata de acusação e a relevância da sentença.

A formação do povo brasileiro sempre esteve marcada pela desumanização de pessoas ou categorias de pessoas como menos humanas ou não humanas. Essa desumanização está associada à discriminação racial e à violência contra os negros escravizados e os povos indígenas.

O racismo no Brasil contemporâneo volta e meia é atribuído ao legado da escravidão, como se o passado se prolongasse automaticamente no presente. Na realidade não se trata de herança, mas de um componente contínuo que se atualiza nos diversos períodos do Brasil República

A democracia no Brasil nunca foi capaz de assegurar para a população negra e para os povos indígenas a plena proteção de seus direitos fundamentais. O funcionamento das instituições do Estado continuou a ser sobredeterminado pela desumanização e pelo racismo. Mas não há dúvida que na esteira das constituições de 1946 e de 1988, vários governos dentro do estado de direito, como os três últimos virtuosos de Fernando Henrique, Lula e Dilma, se considerados sob perspectiva dos direitos humanos, aprofundaram a democratização da democracia

Apesar das políticas afirmativas e da relevantíssima lei de cotas, em pleno século XXI, os brasileiros negros estão quase inteiramente ausentes de todas as carreiras de poder – legislativo, judiciário, tribunais superiores, ministério público, alto comando das forças armadas, docência universitária, postos executivos nas empresas. E ainda estão nos escalões mais baixos de todas as estatísticas sociais, sendo as mulheres negras as mais espoliadas. Nas cidades, nas interações sociais do dia a dia e especialmente na periferia das grandes metrópoles, as polícias militares impõem um apartheid contra os negros, perpetrando o maior número de execuções extrajudiciais no mundo

Em relação aos povos indígenas, no período republicano, prevaleceu uma contradição entre políticas de proteção e incitação ao genocídio continuada. Violações de seus direitos não foram esporádicas nem acidentais como mostrou o relatório da Comissão Nacional da Verdade: são sistêmicas, resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas. Omissão e violência direta do Estado sempre conviveram na política indigenista, ainda que seus pesos respectivos tenham sofrido variações.

A pandemia de Covid 19 escancarou a situação fragílima da população negra e dos povos indígenas perante o virus. Essa revelação brutal ganhou mais nitidez depois das eleições de 2018 com o assalto às instituições de Estado por um governo de extrema-direita de corte neo- fascista.

Como demonstrou a ata de acusação apresentada ao TPP pela APIB, Coalisão Negra por Direitos, Internacional de Serviços Públicos e Comissão Arns, no segundo ano de governo de extrema direita, a pandemia de Covid 19 foi oportunidade para o agravamento das violações de direitos em curso no país, como já indicamos há pouco.

Pediu-se ao TPP que o Presidente Bolsonaro fosse condenado individualmente pela prática de crimes contra humanidade, reconhecendo os efeitos desproporcionais dessa pandemia sobre a população negra, profissionais de saúde, povos indígenas e pela prática de crime de genocídio contra os povos indígenas. Esperemos que a sentença que daqui a pouco será apresentada acate essa acusação.

Essa sentença é exarada por um mundialmente reconhecido tribunal de opinião e poderá se constituir como a única condenação dos crimes internacionais cometidos pelo presidente Bolsonaro. Além desse valor, essa sentença se somará à queixa contra ele submetida pela Comissão Arns e a APIB ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, que está em exame pelo secretariado do mesmo.

A sentença do TPP se situa na esteira da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! ” e da carta das Entidades “Em Defesa da Democracia e da Justiça” publicadas no dia 11 de agosto aqui mesmo na Faculdade de Direito, em defesa do constitucionalismo democrático. E esse julgamento final do TPP ocorre a uma semana do 7 de setembro, no qual a comemoração dos 200 anos de nossa independência será sequestrada, como já foi anunciado, por um governante que ameaça um golpe de estado. Será a primeira vez depois de todos os governos democráticos após da carta de 1946 que as três armas das forças armadas apoiarão e participarão de um ato de campanha política, possivelmente incorrendo em grave ilegalidade.

A reunião de hoje nesse espaço de grande dignidade e bravura como é esta Sala dos Estudantes, assume, contra as ameaças de retorno a ditadura, um inegável conteúdo de conclamação à resistência democrática.

Abaixo o golpe de Estado! Viva a democracia! Viva o Brasil!