Carajás: estratégias de impunidade não encobrem o massacre evidente
27 Abr 2021, 9:08Na tarde de 18 de abril de 1996, Marco Aurélio Garcia me telefona dizendo que o PT havia alugado um jatinho para ir ao Pará investigar um massacre de trabalhadores rurais em Eldorado do Carajás. Fui para Congonhas. Lá estavam José Dirceu, Aloisio Mercadante e logo chegou o fotógrafo Sebastião Salgado, meu amigo, assim como Marco Aurélio, dos idos de 1970 em Paris. Decolamos. Quando escurecia, quase chegando, de repente o avião deu uma subida brusca. Quase nos espatifamos numa montanha.
Chegamos a Marabá à noite. No dia seguinte, bem cedo, Sebastião e eu tomamos um táxi para Eldorado, a 80 km dali, onde 19 trabalhadores sem-terra haviam sido mortos. No necrotério, em meio ao tumulto das famílias desesperadas, os caixões eram depositados em caminhões para serem levados aos cemitérios. Encontrei Alison Sutton, então representante da Anistia Internacional no Brasil, que me contou que as necropsias já haviam sido feitas e corroborariam a versão oficial da polícia militar de um “combate”.
Liguei para José Gregori, então chefe de gabinete do Ministro da Justiça, Nelson Jobim, e disse a ele que, se o presidente Fernando Henrique Cardoso quisesse uma investigação séria dos fatos, esses laudos seriam imprestáveis. Informei ainda que, junto com Alison, havia vindo a Eldorado um médico legista da Unicamp, Nelson Massini, e que o ministério poderia delegar a ele a tarefa de refazer as autopsias.
Gregori me respondeu que iria falar com Jobim. Pouco depois, me retornou avisando que o governador Almir Gabriel ligaria para mim. Quando o governador me chamou, pedi a ele que determinasse ao delegado geral interromper o transporte dos caixões e levá-los de volta ao necrotério onde o legista Massini revisaria as necropsias.
Enquanto isso, Sebastião havia subido no caminhão e fotografava os caixões e todas as cenas de sofrimento e revolta dos familiares dos mortos. A contragosto, o delegado geral cumpriu a ordem do governador.
Assim as necropsias foram revisadas, deixando evidente que as mortes foram execuções deliberadas e seletivas. Entre os 19 assassinados, 12 foram abatidos por tiros certeiros – alguns pelas costas – que atingiram cabeça, tórax e órgãos vitais. Sete foram mortos por instrumentos corto-contundentes, foices e facões retirados dos manifestantes – o que indica que eles já estavam dominados.
No cemitério onde 18 corpos foram enterrados, olho para trás e vejo o general Alberto Mendes Cardoso, então ministro da Casa Militar da Presidência, e mais três militares, assistindo respeitosamente a cerimônia, sob bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O general foi a Eldorado do Carajás a pedido do presidente da República, para colaborar com o MST em uma varredura do terreno, pois se julgava haver mais mortes. Até foi armado um acampamento para alojar os soldados envolvidos nessa busca.
Saí dali e fui para outro cemitério, onde acontecia o enterro de Oziel Alves Pereira. Na entrada, encontro o general Cardoso, com seu bastão de comando, que me pergunta se era ali que estava sendo enterrado um dos sem-terra, pois queria cumprimentar a família do morto.
Uma semana depois, o ministro Nelson Jobim resolveu ir a Marabá ver como andavam as investigações sobre o massacre. Fui com ele. Pediu para visitar o local onde estava instalado o Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o massacre. Fomos conduzidos a uma sala vazia, com uma mesa, uma máquina de escrever e o responsável pelo inquérito, um oficial da intendência que não sabia o que dizer.
Ainda que doze dias depois o presidente criasse o Ministério Extraordinário da Política Fundiária, e que dali se impulsionou a distribuição de terra no seu governo, e no governo do presidente Lula, aquela cena na sala do IPM me fazia vislumbrar a impunidade para os autores da chacina.
Passados 25 anos, dos 155 PMs que participaram do massacre, somente dois oficiais que comandaram a operação foram condenados. O coronel Mário Pantoja, a 228 anos de prisão; e o major José Maria de Oliveira, a 158 anos. Por força de um habeas corpus, os dois só foram presos dez anos após a sentença, em 2012. Em 2018, alegando problemas de saúde, ambos conseguiram cumprir pena em casa com tornozeleira eletrônica. O coronel Pantoja morreu em novembro de 2020, vítima da Covid-19. O coronel Oliveira continua em prisão domiciliar. Os outros 153 PMs, impunes, em função ou aposentados, recebem alegremente suas pensões.
Nota: Em 1996, época deste relato, Paulo Sérgio Pinheiro colaborava com o governo Fernando Henrique na implantação de uma política de Estado de direitos humanos.
Fotos: Sebastião Salgado / Acervo pessoal PSP