Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Caruaru, Normandia e Paulo Freire

Paulo Vannuchi 15 Out 2019, 8:25 centro-paulo-freire-matheus-alves.jpg

Caruaru é uma bela cidade no coração do Agreste pernambucano, banhada pelo rio Ipojuca e imortalizada pelas esculturas de barro do Mestre Vitalino, expostas no Louvre e também num museu de Viena.

Normandia é o litoral francês onde desembarcaram as tropas aliadas no Dia D, reforçando a ofensiva antinazista para barrar a máquina destruidora montada por Hitler, que jurava eliminar qualquer vestígio de direitos humanos da face da terra.

Paulo Freire é um ícone mundial, brasileiro e pernambucano, da educação e dos direitos humanos, que pensou uma profunda revolução nos métodos de alfabetização e lançou as bases da chamada pedagogia do oprimido, um ensino como prática da liberdade.

Onde esses três nomes se encontram hoje?

Na investida conservadora contra o assentamento rural que abriga o Centro de Formação Paulo Freire, na antiga fazenda Normandia, em Caruaru, capital do Agreste. Ataque que busca criminalizar movimentos sociais, estimulando ódio e intolerância, sem ocultar um certo impulso contra qualquer tipo de avanço civilizatório neste chão brasileiro da mesma face da terra.

O assentamento nasceu de uma ocupação em 1993, legalizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Ao longo de 26 anos, afirmou-se como notável núcleo de agricultura familiar, produção orgânica e entrega de alimentos sem veneno para a merenda escolar em toda a região. A antiga sede da fazenda improdutiva abriga o Centro de Formação Paulo Freire, por onde já passaram milhares de crianças e jovens em distintas esferas de escolarização. Promove atividades culturais e esportivas já retratadas em amplas coberturas fotográficas.

Por feliz e sugestiva coincidência artística, uma das esculturas mais celebradas do Mestre Vitalino, moldada com a lama sofrida do intermitente rio Ipojuca, recebeu um nome premonitório: “família lavrando a terra”.

Centros de excelência do mais elevado gabarito, como a Fundação Oswaldo Cruz, a Embrapa e a Universidade Federal de Pernambuco estabeleceram convênios e parcerias com os assentados, desenvolvendo pesquisas e atividades de extensão universitária que fazem do Centro Paulo Freire uma referência mundial para aproximação entre universidade e vida da população.

A investida jurídica noticiada em setembro se apoia nas radicais convicções ideológicas das atuais autoridades federais. A sigla MST, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é satanizada e acusada de doutrinação comunista por ensinar Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Paul Singer, Josué de Castro, Florestan Fernandes, Antonio Candido e outros grandes brasileiros identificados com as causas populares.

Um capitão da PM foi indicado para dirigir o Incra pernambucano pelo deputado federal Luciano Pivar, do PSL, que o presidente da República acaba de catalogar como “queimado” por denúncias sobre desvio de fundos eleitorais do próprio partido do chefe de governo.

Uma advogada da União solicitou reintegração de posse a partir de uma querela que mofava há muitos anos nas gavetas de um Judiciário insensível ao clamor dos mais pobres. Um juiz federal se alinhou rapidamente com essa insensibilidade e lavrou despacho com base em firulas legais que não devem e não podem prevalecer sobre os preceitos da Constituição de 1988 e dos tratados internacionais sobre direitos humanos a que nosso país aderiu voluntariamente. O despacho autoriza uso da força policial, arrombamento, condução coercitiva e remoção ou abate de animais durante a operação.

A sorte já estaria selada se não fossem dois aspectos extremamente positivos que se fundem nesse episódio concreto, conforme se conclui de visitas à região, notícias da Agência Brasil de Fato e de uma excelente reportagem publicada na Folha de S. Paulo duas semanas atrás.

Um desses fatores é a corajosa decisão de resistir, que empolga as centenas de famílias de trabalhadores rurais que se somaram aos assentados, apoiados por amplas parcelas da sociedade civil e entidades religiosas de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil como um todo. A titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, jogou sua autoridade de subprocuradora geral da República para instar as autoridades envolvidas no sentido de buscar uma solução sem violência ou repressão. Membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados visitaram o assentamento e se comprometeram com todas as formas de solidariedade.

O outro fator de esperança reside no fato de que o Nordeste é, hoje, um território onde o eleitor assegurou pelas urnas governos estaduais que seguem fieis aos pressupostos da vida democrática e dos fundamentos inscritos na Constituição de 1988 como direito à vida.

O governador Paulo Câmara e outras autoridades de Pernambuco já anunciaram que se opõem à reintegração de posse e se oferecem para acionar todos os recursos daquela unidade da Federação, com vistas a impedir tamanho retrocesso. Aventam, inclusive, a possibilidade de adquirir a gleba com verbas estaduais e destiná-la ao prosseguimento de sua rotina produtiva, social e educativa.

Autoridades do Judiciário aceitaram estudar essa alternativa e, agora, um prazo legal anteriormente fixado para o despejo está sobrestado. Aguarda-se a superação da crise instalada no Incra federal, onde o general Jesus Corrêa acaba de ser defenestrado pelo presidente da República, repetindo o que parece ser uma dificuldade sindrômica em conviver com os altos funcionários que ele mesmo nomeia, sejam civis, sejam militares.

O Centro Paulo Freire, do assentamento Normandia, em Caruaru, Pernambuco, Brasil, vive nestes dias um suspense que precisa ser acompanhado de perto pela sociedade brasileira. É ainda muito cedo para cantar vitória. Mas está desenhada a chance de se impedir mais uma grave violação de direitos humanos, voltando a prevalecer entre nós a meritória busca de uma solução negociada para os conflitos. Em nome da vida. E também em nome da convivência civilizada entre interesses opostos, essência básica de um regime democrático.

Foto: Matheus Alves