Convite para compartilhar a alegria de viver, de conviver, de lutar, de criar e de amar.
7 Ago 2023, 9:49 Foto: ReproduçãoDiscurso de Maria Victoria Benevides na cerimônia em que recebeu o título de professora emérita da USP
Ao responder à honra desta homenagem, sou chamada a recordar o começo das escolhas, os caminhos e as influências que marcaram minha vida intelectual, acadêmica e de militância cívica.
Sou flumioca, ou seja, uma mistura de fluminense com carioca, pois nasci em Niterói, mas cresci na capital do Rio de Janeiro. Até me casar, vivi com irmãos, mãe e avó na ampla casa familiar em bairro simples de classe média. Éramos oito irmãos, sendo seis mulheres.
A infância é marcada por perdas. Aos 20 anos, meu irmão mais velho José Jeronymo de Mesquita, estudante de Medicina, se alistou como voluntário na Força Expedicionária Brasileira, a FEB. Em novembro de 1944, já no final da Segunda Guerra Mundial, ele morre em combate na Itália. Minha gêmea e eu tínhamos apenas dois anos e nossa Mãe estava no final da espera do décimo filho, aliás uma filha. Com a notícia, meu pai, aos 56 anos, sofre um infarto e, apesar do melhor atendimento médico à época, não sobrevive. Guardo, desde a infância, a imensa admiração que nós sempre tivemos por nossa mãe, uma mulher generosa, culta, inteligente, determinada e corajosa. Maria Luiza Frederica Avé-Lallemant Precht de Mesquita – guardo seu nome com muito amor e respeito; minha Mãe se foi quando eu morava na França, eu tinha vinte e poucos anos, e meus filhos não conheceram essa avó...uma imensa falta.
Vivíamos em uma casa com biblioteca e capela. Ou seja, herdamos o gosto pela literatura e as artes, mas também herdamos a cultura cristã e católica, sem intolerância de qualquer tipo, com avó católica e avô luterano, irmãos socialistas e três tias freiras, amor coletivo pelas manifestações religiosas das culturas africana e indígena. Minha avó materna chegou a estudar a língua tupi.
Nós, mulheres, tivemos o que se chamava “uma educação rigorosa”. Nossa mãe, VIÚVA, sempre dizia: “casamento não é profissão” e nos incentivava a sermos independentes, estudar e construir uma carreira. Outro ponto marcante de Dona Maria Luiza era sua posição política. Discretamente de esquerda, destoava da família tradicional, monarquista e muito religiosa. Ela logo percebeu o horror do regime militar iniciado com o golpe de 1964 e, durante a perseguição política, hospedou em casa e no sítio estudantes da UNE, que se transformavam em “parentes do interior”. Para disfarçar, ela pendurou na varanda da frente uma faixa escrita “Lacerda 65”. (Por ironia do destino, esse líder que fomentou e apoiou o golpe, seria um dos principais políticos cassados).
Estudei em colégio de freiras até os 17 anos, quando fui passar um ano nos Estados Unidos com bolsa de estudos. Gostei de conhecer o país e parte de uma classe alta e ilustrada, em plena era Kennedy e desdobramentos da "guerra fria" — o que contribuiu fortemente para o meu entendimento sobre o ethos de uma sociedade tão orgulhosa de sua democracia e, ao mesmo tempo, tão condicionada para aceitar a supremacia e o imperialismo da grande potência. Estava lá quando ocorreu o malogrado ataque à Baia dos Porcos, na Cuba de Fidel Castro... e os amigos me perguntavam, sinceramente perplexos, “mas por que eles não gostam da gente”? O preconceito deles contra os “hispânicos” — exacerbados pelos rumos da Revolução Cubana — obrigou-me a rever, na volta, as minhas próprias noções vulgares sobre o Brasil, a América Latina e os "subdesenvolvidos" em geral. Preconceito semelhante ao dos norte-americanos, eu perceberia mais tarde, desta vez contra árabes e os ditos "meridionais", durante o tempo passado na França.
Participei do movimento estudantil antes de 1964, quando fazia o curso de Sociologia e Política na PUC do Rio. Gostei imensamente dos estudos, dos professores e da efervescência política daqueles anos intensos, 1962 e 1963. Participei da Juventude Universitária Católica sob a liderança do Betinho, e também do que seria o embrião da Ação Popular; ambas – a JUC e a AP – foram influenciadas tanto pelo que seria conhecido como Teologia da Libertação, quanto pelos movimentos revolucionários da América do Sul e Caribe. Camilo Cienfuegos, Che Guevara, Frantz Fanon, Socialismo ou Barbárie. Frei Carlos Josaphat, Dom Pedro Casaldáliga, Frei Betto e os dominicanos de São Paulo. Desta época de fortes raízes contestadoras guardo a amizade com Teresa Martins Rodrigues, Dodora Arantes, Vicente Trevas e Paulo Sergio Pinheiro. Paulo Sérgio, aqui presente, foi o primeiro articulador da nossa Comissão Arns.
Casei cedo, no meio do curso. Exatamente no dia 13 de março de 1964, famoso dia do comício da Central (que foi a tal gota d’água para o golpe militar), desembarcamos na França, recém-casados e sem um tostão. Lá moramos em Besançon por quatro anos e meio. Portanto, nesse primeiro período da desgraça política estávamos no exterior, numa cidade pequena, sem notícias do país a não ser pela leitura do Le Monde. Mais tarde, ainda estávamos lá nas manifestações de maio 68, bem isolados na pacata vida provinciana. De certa forma, hoje posso dizer que fui duplamente protegida pelo casamento e a viagem: protegida do chamado da resistência estudantil no Brasil - que sabia ser irresistível e que envolveu vários amigos – e também protegida do fascínio das barricadas em Paris.
Em Besançon, o primeiro filho; fiquei encantada com a maternidade e com minhas insuspeitas qualidades domésticas, pois aprendi a cozinhar e a costurar. Comecei a estudar na Faculté des Lettres, onde me interessei pelos cursos de Sociologia e História. Devo aos amigos franceses a compreensão da radicalidade na defesa da escola laica e da educação republicana – o que pode soar óbvio, mas apenas para quem não se formou em colégio brasileiro tradicional e elitista. Mas não foi possível continuar a frequentar as aulas na Faculté: mãe sem qualquer outra ajuda, com o marido trabalhando firme no Observatório Astronômico e preparando a tese, simplesmente não dava! Voltamos depois do Doctorat d’État do Paulo, na Sorbonne, e viemos para cá, ele já contratado pela USP. Devo dizer que Paulo sempre me apoiou, nos estudos e na vida política, ele muito grato pela feliz parceria em nosso tempo francês.
Chegamos a São Paulo no final de 1968 e logo consegui transferência para a USP, onde ingressei no curso de Ciências Sociais em 1969, na vigência do Ato Institucional nº5. Neste ano a Faculdade seria atingida pela aposentadoria obrigatória de mestres da Sociologia, como Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, dos quais assisti apenas à primeira aula – o que sempre lamentei.
Minha vida estudantil nas Ciências Sociais foi boa e instigante, mas não uma típica experiência universitária, como ocorrera na PUC do Rio; não tive participação em grupos políticos nem na vida social dos estudantes. Gostava das aulas de Ruth Cardoso, Carmute Campelo de Souza e Eunice Durham – excelentes professoras e também, para minha grata surpresa, feministas!
Quando ingressei no Mestrado, já tinha três filhos pequenos. Aprendi, na prática como ser estudante-mãe de família.
Não tive ajuda da família, que morava no Rio. Foi trabalhoso, mas eu não podia sequer imaginar a hipótese de não ser mãe.
Para o Mestrado estava especialmente interessada em conhecer a história política brasileira, até por estarmos vivendo em plena ditadura. Conversando com o Paulo – que era da área de exatas, mas tinha uma boa formação política e literária – ele sugeriu uma pesquisa sobre o presidente Juscelino Kubitschek (1955-1961), destacando como ocorreu o seu governo em um período tenso – entre o suicídio de Getúlio Vargas e a renúncia de Jânio Quadros – mas que marcou profundamente a história da industrialização e da democracia brasileira, com as conhecidas limitações. Eu não tinha ilusões, mas queria compreender o que garantia a estabilidade política do governo JK em tempos de “50 anos em cinco”, novidades administrativas, oposição impenitente e até rebelião militar.
A defesa da dissertação aconteceu em novembro de 1975 e fizeram parte da comissão examinadora os professores Francisco Weffort e Oliveiros Ferreira, da FFLCH, e Celso Lafer, da Faculdade de Direito. O anfiteatro, ainda nos “barracões” da Cidade Universitária, estava lotado, e com a surpreendente presença, na primeira fila, dos ilustres professores Florestan Fernandes, Antônio Candido e Caio Prado Junior. Claro, claríssimo, não era por mim, mas por se tratar da primeira defesa na área de Política depois dos expurgos e pela ênfase dada à relação entre democracia e desenvolvimento – o que, na época, podia ser visto como um “ato de resistência”, saudado por intelectuais, lideranças políticas e jornalistas. Basta lembrar a vigência do A.I.5 e os anos de chumbo. Um mês antes da defesa ocorrera o assassinato, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog. A Missa na Catedral da Sé, com forte vigilância policial, ecoou a Missa que fora celebrada por Dom Paulo depois do assassinato, também sob tortura, do estudante da USP Alexandre Vannuchi Leme, em março de 1973. Em ambos os casos, o movimento estudantil renovou as forças – e 1975 foi um ponto de não-retorno também para setores da Igreja que se engajaram na luta contra a ditadura e pelos direitos humanos.
Nessa época iniciei aproximação com a Comissão Justiça e Paz, sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns. Foi quando tive a imersão no doloroso conhecimento – sem censura! – da extrema violência da ditadura, inclusive contra estudantes e professores da USP como narrado no Livro Branco da USP e também no Brasil Nunca Mais. Faço aqui uma singela homenagem à memória de duas jovens da USP, Heleny Guariba e Ana Rosa Kucinski, assassinadas pela repressão militar.
Foi então que a forte temática da democracia e dos direitos humanos se tornou essencial na minha vida. Hoje continuo neste campo e sou membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns, fundada no começo de 2019, e hoje presidida pelo advogado José Carlos Dias, também ex-presidente da Justiça e Paz durante a ditadura, quando advogados corajosos e abnegados trabalharam sem trégua na defesa dos perseguidos, dos presos, dos torturados, no apoio às famílias dos ditos “desaparecidos”. Acompanhei essa luta e guardo, com gratidão, o que aprendi e que até hoje é base para a defesa dos direitos humanos. Muito grata, aqui sou devedora: obrigada, José Carlos Dias, Margarida Genevois, Belisário dos Santos, Mariz de Oliveira aqui presentes. Obrigada Dalmo Dallari, Mário Simas, José Gregori, Valdemar Rossi, Marco Antonio Rodrigues Barbosa. Margarida Genevois. A Comissão Arns, que sobreviveu aos quatro anos do governo inimigo dos direitos humanos, sabe que seu caminho é longo e árduo – mas temos um norte e estamos juntos.
Terminado o Mestrado, fui convidada pelo professor Francisco Weffort para ingressar no recém-criado Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, o Cedec, onde participei de pesquisas e seminários sobre o processo da democratização, cidadania e movimentos sociais. Tínhamos especial interesse pelo reconhecimento das classes populares como novos sujeitos na vida pública, e para uma nova visão sobre a democracia efetivamente participativa. Foi também lá que iniciei pesquisa sobre violência urbana e o papel das polícias contra o povo pobre e periférico. Aprendi muito no Cedec e tive a feliz oportunidade de conviver com intelectuais e políticos do Brasil e do exterior. Foi um período de intensos debates e compartilhamento de experiências.
No Cedec fiquei até vir para a FEUSP, com o compromisso de tempo integral e dedicação à pesquisa. Estava no Cedec quando terminei a pesquisa para o doutorado. A escolha do tema União Democrática Nacional – ambigüidades do liberalismo brasileiro pretendeu contribuir para o conhecimento da história de nossos partidos políticos e das mazelas da representação elitista e antidemocrática. A UDN foi criada em radical oposição ao getulismo e seus fundadores se intitulavam “liberais do lenço branco e da eterna vigilância". Eram liberais que não aceitavam perder eleições, vício bem conhecido na política brasileira. E o partido que nascera contra o Estado Novo, torna-se o braço civil do golpe de 1964, para findar, “em apagada e vil tristeza” com o Ato Institucional que aboliu todos os partidos. O escritor Antonio Callado escreveu uma resenha quando a tese saiu publicada – e deu um título devastador: O Retrato de Dorian Gray.
Na comissão examinadora da tese, em 1980, tive a honra de contar com o jurista Vitor Nunes Leal. Sua presença, primeira e única na USP, além da beleza da arguição, foi uma festa para todos os admiradores do autor do clássico Coronelismo, Enxada e Voto.
Nessa época, minha filiação ao Partido dos Trabalhadores pode ser entendida como uma forma para aliar, ao trabalho acadêmico, a militância política, sem que esse engajamento signifique – e nunca significou – uma vocação para a disputa eleitoral ou para cargos político-administrativos, pelos quais não tenho gosto ou talento. O PT nasceu, cresceu e se consolidou inspirado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Sua marca de raiz, que o distinguia entre os partidos, consistiu na adesão aos princípios da melhor tradição socialista, junto ao compromisso com a vida democrática e republicana.
Continuo firme no partido, onde convivi com legítimos defensores dos direitos humanos como Paulo Vannuchi, aqui presente; participei do Instituto Cidadania, fui presidente da Comissão de Ética Pública no primeiro governo Lula e afirmo: o PT tem a obrigação de corresponder ao seu programa, com a antiga e a nova militância, com os movimentos sociais, com a frente ampla pela democracia, e com a esperança que fez brotar novamente no povo brasileiro.
Nessa trajetória da esquerda, vejo como um ponto de inflexão importante Carlos Nelson Coutinho, com seu texto A democracia como valor universal, que retoma a tese do líder italiano Enrico Berlinguer. Esse salto foi decisivo para a esquerda reconhecer o valor da democracia e dos direitos humanos. Democracia passou a ser uma prioridade da esquerda a partir da repressão na ditadura militar.
Ingressei na FEUSP em junho de 1985. Estava especialmente motivada pelo convite do Professor sociólogo Celso de Rui Beisiegel, para a docência na área de Sociologia da Educação, com ênfase nas questões de Sociologia Política. Lembro de ter dito: “Mas eu não sou da área, nunca li Jean Piaget, por exemplo,”. Ele respondeu que precisava de alguém com o meu perfil, para tratar dos temas de democracia e democratização – sobretudo depois da Anistia de 1979 – quando já surgiam propostas de Constituinte, eleições diretas, participação popular, partidos e movimentos sociais.
Eu ia completar 43 anos e sabia que começar carreira universitária nessa faixa etária era, no mínimo, um "caso curioso"; tinha dez anos de mestrado e cinco de doutorado, mas minha experiência docente era praticamente nula. O acolhimento e o trabalho na FEUSP superou, em muito, minhas frágeis expectativas; vesti a camisa com o maior entusiasmo. E só me aposentei, no limite compulsório do estatuto uspiano.
No começo da docência na Faculdade de Educação fiquei marcada por um acontecimento em sala de aula: era um sábado chuvoso e de notícias tristes e, sem me dar conta, fiz um quadro muito negativo da realidade brasileira – quadro verdadeiro, mas desesperador. Uma aluna se levantou, emocionada e quase enraivecida e perguntou: “Mas, professora, se a situação é assim tão ruim o que nós vamos fazer? Vamos cortar os pulsos, vamos dançar um tango argentino?”. O susto me baqueou, e tive que dar uma resposta animadora. E assumi o compromisso, comigo mesma, de sempre falar com clareza sobre os problemas, mas com a responsabilidade de apontar caminhos e possíveis soluções.
Aqui, destaco que nunca considerei o estudo dos temas da Sociologia e da Ciência Política - e, menos ainda, o campo fascinante da educação, da democracia e dos direitos humanos – como apenas bons objetos de análise e reflexão. Por mais legítimas e agradáveis que considere as alegrias da erudição – jamais negadas – quis compreender os fatores sociais que provocam situações de injustiça, bem como os subsídios importantes para a atividade pública. Daí, tenho sempre presente a preocupação com o avanço do conhecimento, mas também com propostas de soluções, remédios institucionais, programas de mudança.
Foi o que pretendi fazer com a pesquisa para a livre-docência, já nesta Casa: escolhi estudar as possibilidades de ampliação da democracia, pelos mecanismos constitucionais de participação cidadã e democracia direta. Na tese, destaquei o vínculo entre democracia participativa e a educação política do povo.
Lembro, aqui, a advertência de Norberto Bobbio, em seu conhecido ensaio sobre "o futuro da democracia" (1986). O mestre italiano denuncia a crítica teórica descompromissada, repudia as soluções meramente verbais e se impõe, como um dever, uma tarefa, a apresentação de propostas concretas e realizáveis. Muito mal comparando, segui o conselho de Bobbio.
Ao elencar as pesquisas realizadas, todas publicadas, registro minha profunda convicção sobre o privilégio, neste país de tamanhas desigualdades, de sempre ter tido amplo e fácil acesso à educação e à cultura, em suas múltiplas expressões. Estudei e pesquisei com bolsas de estudo: Fundação Ford, FAPESP, CNPq, Social Sciences Research Center, Comité Catholique. Em decorrência, o sentimento inarredável de uma dívida social, aliada ao compromisso com a solidariedade ativa, deve explicar boa parte do que venho tentando fazer até hoje.
Além de professora na FEUSP, tem lugar importante em minha vida a Escola de Governo, inicialmente ligada à USP - graças ao então reitor Jacques Marcovitch. A Escola surgiu de uma proposta do professor Fábio Konder Comparato, com a firme adesão do professor Claudineu de Melo - e obteve o apoio de intelectuais e políticos. Ambos, Comparato e Claudineu, dirigiram a Escola com inteligência política e pedagógica, além da dedicação e do entusiasmo. Nosso objetivo era a formação para a vida pública, independentemente de diplomas e de qualquer filiação partidária. O programa refletia o compromisso com a democracia participativa e com os valores republicanos, com a ética na política, com o desenvolvimento nacional e sustentável e com o respeito integral aos direitos humanos.
A Escola de Governo tornou-se um curso anual de “aperfeiçoamento” inserido na grade dos cursos extras da USP. Funcionou por algum tempo na Maria Antônia, o que para nós foi muito importante, pelo significado da Maria Antônia na história da democratização. Dessa época registro, agradecida, o apoio constante dos Professores José Mario Azanha e Celso Beisiegel.
Volto à Faculdade de Educação.
Em 1996, foi criada a Cátedra UNESCO-USP de Educação para a Paz, os Direitos Humanos, a Democracia e a Tolerância instalada no Instituto de Estudos Avançados da USP. Roseli Fishman, nossa colega, contribuiu muito e articulou apoios para a iniciativa, que contou com a participação de vários professores da FE, a começar pelos professores Azanha, Beisieguel, Lisandre Castello Branco e eu. Foram quatro anos de seminários, publicações, projetos de pesquisa e docência, além do convívio com diversas áreas do trabalho universitário.
Professora de Sociologia da Educação, é natural que queira lembrar uma questão central em nossas aulas: a relação, tão antiga quanto polêmica, entre educação e política. O papel do educador, com maior ou menor consciência e empenho, terá sempre um lado político - entendendo-se a política no seu sentido nobre e verdadeiro, aquele que aponta para o primado do bem comum como essência da República e para os princípios da liberdade, da igualdade e da solidariedade, fonte da Democracia.
Foi aqui na FE que entendi porque Anísio Teixeira denunciava, na política brasileira, o abismo entre os valores proclamados e os valores reais, ao citar o discurso de governantes sobre “educação é prioridade”, ou programas exaltados como “pátria educadora” em radical contradição com a realidade das escolas públicas em todo o país. E compreendi que a escola cidadã é aquela na qual todos os membros formam uma comunidade que tem em comum o engajamento na construção de um espaço público democrático. Uma escola que mantém constante o compromisso com projetos pedagógicos e de convivência que decorrAm do diálogo, da participação, do respeito, para a formação e a socialização na vida democrática,
Com essa orientação, escolhi, para pesquisa e docência, o tema que, a meu ver, melhor reúne as reflexões de uma socióloga no trato com a “coisa pública”, com a atividade política e suas relações com a educação e os sistemas de ensino: o tema da educação para a democracia, associado à educação em direitos humanos.
A partir dessa escolha, passei a buscar a vinculação entre educação, democracia e direitos humanos, tema candente neste primeiro quarto do século XXI, com as novas tecnologias da informação e da comunicação, a inteligência artificial, a radical transformação do mundo do trabalho, a emergência das mudanças climáticas, o desmatamento, o racismo estrutural, as questões de gênero, o fanatismo religioso e o negacionismo científico, as pandemias, as guerras absurdas, a fome, o povo em situação de rua... a lista é longa.
É bom lembrar que a Conferência Internacional de Direitos Humanos de 1993, em Viena, deixou claríssima a inter-relação entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento. Essa Declaração é o primeiro documento da ONU que consagra, explicitamente, a democracia como o regime político mais favorável à promoção e à proteção dos direitos humanos.
Importante tópico inicial em meus cursos sempre foi conhecer e discutir a nossa Constituição promulgada em 1988 e que estabelece como objetivos da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º).
Nossa Carta Magna reflete, assim, uma feliz combinação de direitos sociais e direitos políticos – ambos entendidos como resultado de uma longa história de lutas e de reconhecimento, ético e político, da dignidade intrínseca de todo ser humano, independentemente de quaisquer distinções.
Uma bela Constituição social é, sem dúvida, um avanço considerável em relação à nossa história regada com sangue de escravizados. No entanto, desde sempre e ainda hoje, a realidade brasileira explode em violenta contradição com aqueles ideais proclamados. Sabemos todos da profunda desigualdade social, fruto de persistente política oligárquica e da mais escandalosa concentração de renda. E, hoje, ainda enfrentamos um processo de negação dos direitos sociais arduamente conquistados.
Nos cursos, optei por definir democracia como o regime político fundado na soberania popular e na legitimidade do Estado de Direito e, sobretudo, no pleno respeito aos direitos humanos de todos. Esta breve definição tem a vantagem de agregar democracia política e democracia social; isto é, a democracia política instaura as liberdades civis e individuais, a separação e o controle sobre os poderes, a alternância e a transparência no poder de mando, assim como a exigência da participação popular na esfera pública. E a democracia social, por outro lado, e igualmente importante, consagra a igualdade na busca e na garantia dos direitos socioeconômicos, com pleno respeito à diversidade humana, à biodiversidade e à defesa ecológica.
E como sempre insisti: democracia não é apenas um regime político e uma forma de governo: é um modo de vida. Gostando ou não, vivemos juntos e a democracia – com a exigência de cooperação e respeito entre as partes - é o melhor jeito para enfrentarmos de modo civilizado os conflitos e divergências inerentes a todas as sociedades.
Direitos Humanos são aqueles direitos comuns a todos os seres humanos – são universais – sem distinção de raça, etnia, nacionalidade, gênero e orientação sexual, nível socioeconômico, religião, grau de instrução, profissão, faixa etária, grau de higidez física e mental, opinião e militância política e julgamento moral – e que têm como pressuposto óbvio o direito à vida. Decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano.
Foi preciso esperar o ano de 1948, depois das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, para que a primeira Declaração Universal de Direitos Humanos da História afirmasse que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos; são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (artigo 1º). A evolução histórica dos Direitos Humanos contempla direitos civis e políticos (com destaque para o direito à memória e à verdade, tão importante no Brasil) direitos econômicos e sociais, direitos culturais, direitos dos povos, direitos ambientais e de toda a humanidade. São indivisíveis, interdependentes e irreversíveis. São direitos sem fronteiras, de “solidariedade planetária”.
E o que defino como Educação em Direitos Humanos? Trata-se de uma proposta pedagógica multidimensional, que orienta a formação do sujeito de direitos, a ser compartilhada por educadores e educandos. É essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância, da diversidade e da paz.
A formação dessa cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais – os quais devem se transformar em práticas. Trata-se do que já se convencionou denominar, nos setores educacionais democráticos, de Educação Emancipadora, que gere uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e político.
Lembro, aqui, nosso saudoso mestre Prof. José Mario Pires Azanha quando, ao se inteirar do meu entusiasmo, enfatizava que a proposta de direitos humanos na escola só será possível se estiver associada às práticas democráticas, à relação de respeito com os alunos, com os pais, com os professores, com os funcionários e com a comunidade que a cerca. É nesse sentido que este programa serve, também, para cobrar da cada escola o enfrentamento de suas próprias contradições e os conflitos no seu cotidiano.
Ao abordar essa temática, certamente ambiciosa, saliento uma inquietação que vem sendo crescentemente espicaçada: até que ponto os direitos humanos ditos “universais” e historicamente consagrados, respondem às lutas pelo reconhecimento da legitimidade de particularidades, em termos de identidades biológicas, raciais, culturais, territoriais, tecnológicas - como os direitos ambientais e nossa relação com a Mãe Terra, os direitos dos povos indígenas, os direitos dos povos à autodeterminação e ao desenvolvimento, a atualização do direito à memória e à verdade, os novos direitos em torno das questões de gênero, da luta das mulheres, da denúncia do racismo estrutural, da violência policial normalizada contra os mais vulneráveis, dos direitos decorrentes das novas tecnologias, inclusive por conta da globalização desorganizada e do capitalismo triunfante.
Não temos respostas prontas e sem controvérsias. Mas posso adiantar que tanto a democracia quanto os direitos humanos são processos históricos e a lista de direitos não é congelada, assim como o escopo da democracia permanence em aberto. A globalização, para o bem e para o mal, é uma realidade, mas a humanidade é uma só, assim como nosso planeta de humanos continua sendo único. Hoje, o direito ao desenvolvimento, por exemplo, além de concebido como de titularidade individual e coletiva (ou seja, para todas as pessoas e para todos os povos) foi reforçado como um direito universal inalienável e parte integrante dos direitos humanos fundamentais.
A Educação em Direitos Humanos precisa ser retomada em nosso país de forma permanente e transversal como eixo da educação formal, mas também como uma ampla ação das organizações da sociedade civil apoiadas pelo Estado. A educação sozinha não fará o necessário enfrentamento da cultura fascistóide desses últimos anos (discurso de ódio, violência de todo tipo, preconceito e discriminação, atitudes racistas, machistas e misóginas), mas seu papel estratégico é inegável e precisa ser realizado como ação intencional, planejada, com capacidade de mobilização mais ampla possível.
Hoje, no novo governo da volta democrática, devem ser retomadas e atualizadas as propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos III, assim como as recomendações da Comissão da Verdade. Cabe, igualmente, discutir e aprofundar o recente e excelente trabalho desenvolvido pela Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, espalhada por todo o país.
Portanto, faz todo sentido investir inteligência, força política e recursos nos programas de Educação para a Democracia e em Direitos Humanos. E a oferta desse curso, na graduação, na licenciatura e na pós-graduação consistiu, em boa parte, o meu compromisso com a FEUSP.
Minha segunda disciplina na FEUSP, Educação e Cultura Brasileira, resultou de uma estimulante conversa com José Mário Pires Azanha, na época chefe do EDF. Concordamos quanto à necessidade de um mínimo de conhecimento, para os alunos da Pedagogia, de textos seminais sobre nossa formação social, não apenas do ponto de vista histórico, mas, especificamente, do ponto de vista da compreensão dos temas mais representativos na composição do complexo cultural brasileiro - ou seja, as raízes do Brasil. Isso significaria a discussão dos "inventores do Brasil" (no dizer de Antonio Cândido), como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Autores que fogem ao formalismo universitário, como João Ubaldo de Viva o Povo Brasileiro e mesmo Darcy Ribeiro - com seu último e magistral O Povo Brasileiro, foram, igualmente, referências fundamentais.
Para Antonio Candido, um dos principais objetivos da educação é justamente afirmar e promover a humanização, o que pode ser feito, a seu ver, através das várias formas da literatura. Isto é, a humanização como “o processo que confirma em todo ser humano aqueles traços que reputamos como essenciais – tais como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, – e, sobretudo, a tolerância com o próximo, o afinamento das emoções, o senso da beleza, o cultivo do humor, da afetividade, da alegria”.
Obrigada, querido Mestre! Quantas saudades!
E por falar em saudades...
Esta generosa cerimônia hoje, me faz recordar as vezes em que fui paraninfa das turmas da Pedagogia. “Brasil, um raio vívido de amor e de esperança à terra desce... Verás que um filho teu não foge à luta”... Todas e todos em pé, tem início a noite de formatura nesta faculdade. Pela enésima vez, sentia um nó na garganta ao cantar aqueles versos de nosso hino. Claro, reconheço: a letra é ufanista, a melodia é tronante e tudo é meio piegas nessas solenidades, assim como são descabidas as expressões de nacionalismo exaltado e, enfim, como são ridículas as cartas de amor. No entanto, sempre haverá momentos especiais em que cartas de amor dão o melhor sentido da vida e quando os cantos de resistência – como o refrão dos partisans e o nosso “o povo unido jamais será vencido” – dão o alento às lutas que nos inspiram e que nos movem.
Enfim, gostaria de acrescentar que sem empatia, alegria, afetividade e senso de humor não há possibilidade de crítica, de autocrítica e de transformação. Num país como o nosso, marcado por desigualdades e injustiças devastadoras, não podemos sucumbir ao pessimismo ou à melancolia dos conformistas. Há que se ter, evocando Paulo Freire, uma pedagogia da indignação; há que se ter uma pedagogia da construção, do assombro e da admiração diante de tudo o que afirma a vida, que seja um permanente convite para se compartilhar a alegria de viver, de conviver, de lutar, de criar e de amar.