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Ditadura via D. Cláudio Hummes como ameaça à 'paz pública' e vigiava cardeal, revelam documentos

Bernardo Mello Franco 10 Jul 2022, 17:44 Dom Claudio Hummes em greve no ABC Dom Claudio Hummes apoiou as greves no ABC - Fernando Pereira / Cpdoc JB

A ditadura militar vigiou e fichou como subversivo o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo. Documentos dos órgãos de repressão mostram que o religioso era visto como uma ameaça ao regime. Conselheiro e amigo do Papa Francisco, ele morreu na última segunda-feira, aos 87 anos.

Papéis do Serviço Nacional de Informações (SNI) descrevem Hummes como um agitador a serviço da “revolução popular”. No período em que atuou como bispo de Santo André, ele aproximou a Igreja dos trabalhadores e apoiou as greves do ABC paulista, que agitaram o país a partir de 1979.

Relatório de maio de 1980, classificado como confidencial, define Hummes como “um dos principais ativistas do movimento grevista”. O religioso se solidarizou com os metalúrgicos que lutavam por melhores salários, participou de assembleias e protegeu sindicalistas perseguidos pela polícia política.

“Sob a justificativa de defesa dos pobres, oprimidos e marginalizados, o citado membro da hierarquia católica (...) vem participando, ativa e publicamente, de atividades de incitamento aos aludidos trabalhadores, objetivando criar um clima de sistemática contestação ao governo, com iminente risco de conflito social, colocando em perigo a paz pública”, escreveu o SNI.

“Tudo isso é feito numa atitude de constante desrespeito à lei e às decisões judiciais e de confronto às autoridades”, prosseguiu o documento, compartilhado com os serviços secretos de Exército, Marinha e Aeronáutica.

“Fermento da revolução”

Na visão dos arapongas, Hummes queria “levar o governo a posicionar-se contra o clero e criar as condições objetivas para o surgimento de ‘mártires’, especialmente no meio do operariado”. “Convém frisar que esse método de ação nada mais é o que a colocação em prática da chamada ‘Teologia do Conflito’, sequência da ‘Teologia da Libertação’ (...), a qual preconiza a necessidade de ‘mártires’ como fermento da revolução popular”, acusou o SNI.

Os arquivos secretos mostram que a ditadura interceptou telegramas e monitorou palestras e sermões do cardeal. Em julho de 1981, agentes do II Exército acompanharam uma visita de Hummes à Universidade Metodista de Piracicaba.

O relatório transcreve as falas do religioso, que protestou contra a violência da repressão no ABC. “Com a decretação da ilegalidade da greve, a polícia invadia as igrejas e prendia muitas pessoas, desrespeitando o templo, coisa nunca feita pelos metalúrgicos”, criticou o cardeal.

O documento registra que Hummes classificou o movimento sindical como “justo e pacífico” e atribuiu o apoio da Igreja uma “questão de direitos humanos”.

O cuidado do cardeal em explicar suas atitudes fica claro em outro informe do SNI, redigido em abril de 1979. Naquele mês, o então bispo mandou ler um comunicado nas missas de todas as paróquias da região. Ele afirmou aos fiéis que só havia decidido apoiar a greve pelo “caráter justo das reivindicações” e pela “natureza pacífica do movimento”. E avisou que os salões paroquiais continuariam abertos para recolher doações às famílias dos trabalhadores.

“O objetivo da Igreja é tão somente a defesa dos direitos fundamentais dos metalúrgicos. As demissões nas fábricas, por constituírem rompimento do acordo, merecem seu protesto veemente”, escreveu.

Em setembro de 1981, a ditadura destacou um espião para monitorar Hummes durante viagem a Belém. Em reunião com cerca de 30 fiéis e líderes comunitários, ele encorajou novas mobilizações sindicais. “A luta popular não precisa ser feita com o emprego da violência, uma vez que o povo tem a arma pacífica mais eficaz para promover mudanças sociais: a greve”, disse.

O então bispo acrescentou que “o papel da Igreja não é o de tomara frente nas mudanças políticas e sociais, mas estar ao lado do povo nestas mudanças”.

Dois anos depois, o SNI espionou outra palestra de Hummes em Santo André. A uma plateia de estudantes, ele explicou a razão do incômodo dos militares com as atividades do clero: “Em vez de a Igreja trabalhar pelos pobres, ela passou a trabalhar com os pobres. A partir daí, começou a ser vista com muita preocupação pelo regime”.

A ala progressista da Igreja atormentava a chamada comunidade de informações. O tema ocupou 29 páginas do dossiê “Análise da situação da subversão no Brasil em 1979”, produzido pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE). O texto acusava o “clero mal-intencionado” de difundir “ideias de fundo marxista” para desestabilizar o regime.

“A atuação do MCI (sigla para “movimento comunista internacional”) no campo religioso é talvez a mais insidiosa forma de ameaça à segurança interna em termos de subversão”, sentenciou o Exército. “É imprescindível reconhecer na subversão clerical uma das principais armas modernas da agressão comunista, e assim enfrentá-la, sem desviar-se para um anticlericalismo inconsequente”.

O CIE reconheceu que o “combate à subversão praticada por sacerdotes, particularmente bispos” impunha “dificuldades especiais” à repressão. E sugeriu concentrar as ações no “campo psicológico” para tentar despolitizar os fiéis.

Na mira da Polícia

Apesar das recomendações de cautela, o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo pediu, em 30 de abril de 1980, que Hummes fosse indiciado criminalmente por “incitamento à greve”. O delegado Edsel Magnoti ainda sugeriu o enquadramento de 18 metalúrgicos. A lista era encabeçada por um certo Luiz Inácio da Silva, que estava preso com base na Lei de Segurança Nacional e seria eleito presidente 22 anos depois.

A ameaça de processo não intimidou o então bispo de Santo André. Na semana seguinte, ele voltaria a reunir provas para denunciar abusos contra os trabalhadores, registra outro relatório do SNI preservado no Arquivo Nacional.

— A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão — afirma Dom Angélico Sândalo Bernardino, que coordenava a Pastoral Operária.

Aos 89 anos, o arcebispo emérito de Blumenau diz que Hummes deu exemplo de coragem ao apoiar os metalúrgicos e abrir a matriz de São Bernardo do Campo para abrigar sindicalistas na mira da polícia.

— Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores. Foi um tempo de perseguição e de arbitrariedades. Um tempo que nunca mais pode voltar ao Brasil.

Artigo publicado em O GLobo, 10/7/2022