Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Marco temporal tem consequências internacionais sérias, alertam Comissão Arns e IBDH, na ONU

Paulo Lugon Arantes 7 Out 2024, 9:52 Marco-temporal-07-10-24-02

A Comissão Arns e o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH) alertaram ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que o ato do Congresso Nacional, ao aprovar a Lei -14.701/23, do marco temporal, acarreta responsabilidade internacional do Estado.

No dia 3 de outubro, na 57ª sessão do Conselho, ao se pronunciar em declaração oral conjunta das entidades, Maria Hermínia Tavares de Almeida, membro fundadora da Comissão Arns, destacou: “Tanto a ONU quanto o sistema interamericano identificaram claramente uma obrigação positiva do Estado de demarcar territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas como corolário desse direito. Essa obrigação foi claramente declarada durante a revisão periódica do Brasil no âmbito do Comitê de Direitos Humanos, no ano passado, em conexão com a Declaração dos Direitos Indígenas da ONU, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, uma riqueza de jurisprudência, escritos de estudiosos e medidas concedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o Brasil”.

De fato, o marco temporal tem a sua legalidade questionada pelos órgãos das Nações Unidas há cerca de uma década. Em seu relatório de visita ao Brasil, a então relatora para os Direitos dos Povos Indígenas, em 2016, declarou que a respectiva tese é contrária aos padrões internacionais, inclusive as convenções ratificadas pelo Brasil pelo seu próprio exercício de soberania estatal. A própria relatora enviou um amicus curiae ao Supremo Tribunal Federal (STF) explicando sobre tais ilegalidades. Dentre muitos outros, o novo relator, adverte, mais uma vez, em comunicado específico, ainda quando a Tese de Repercussão Geral era julgada pelo STF, que declarou o marco temporal inconstitucional.

Como o processo de ratificação dessas convenções tramita obrigatoriamente pelo Congresso, por mandamento constitucional, essa casa assume a obrigação de respeitar e garantir as disposições das convenções que ele próprio assentiu. Ao adotar leis que contrariam essas convenções, comete o Congresso um ato internacional ilegal, com consequências jurídicas, econômicas, e de imagem para o Estado brasileiro.

Ao aderir a essas convenções, após sair de uma ditadura que persistiu por duas décadas, o Brasil demonstra uma abertura democrática e o engajamento com a comunidade internacional como uma nação civilizada, negando a barbárie do regime ditatorial que dizimou mais de 8.500 indígenas, segundo o Relatório da Comissão da Verdade. Durante os últimos dois anos, o Estado brasileiro passou por importantes revisões dessas convenções.

O Comitê de Direitos Humanos, que monitora o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e revisou o Estado brasileiro em junho de 2023, expressou sua preocupação “com a falta de aplicação efectiva do processo de demarcação de terras, levando a um crescimento de conflitos fundiários, invasões ilegais e exploração de recursos e ataques e assassinatos de povos indígenas”. O Comitê manifestou igualmente a sua preocupação “com a limitação do marco temporal para reivindicar a demarcação de terras indígenas” e lamentou que “a titulação de terras para a comunidades tem progredido muito lentamente”. E recomendou “defender o direito dos povos indígenas às terras e territórios que tradicionalmente possuíam ou ocupavam, inclusive revisando sua legislação atual e rejeitando e pondo fim à aplicação e institucionalização da doutrina de marco temporal”.

Já o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que monitora o Pacto Internacional sobre dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, revisou o Estado brasileiro em setembro de 2023, expressando preocupação “com os relatos de que a apropriação de terras, o acúmulo de recursos naturais, um grande número de disputas de terras não resolvidas e a alta concentração da propriedade da terra no Estado Parte prejudicam o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais por indivíduos e grupos desfavorecidos e marginalizados e desencadearam sérios conflitos sociais e violência”.

A recomendação foi de “agilizar a demarcação, regularização e titulação das terras e territórios dos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais de acordo com os padrões internacionais e defender seus direitos, rejeitando a aplicação e institucionalização da doutrina do marco temporal".

Em maio de 2024, o comitê que monitora a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, na sigla em inglês), que monitora a convenção de mesmo nome, indicou que a permanência do marco temporal legislado no Brasil é uma forma grave de violência de gênero. Diz o relatório da entidade: “Os povos indígenas e as pessoas afrodescendentes, em particular as mulheres indígenas e quilombolas, não têm títulos de propriedade das suas terras e enfrentam remoções forçadas de terras tradicionalmente ocupadas ou utilizadas por eles e a exploração dessas terras por intervenientes privados não estatais, como indústrias extrativas e promotores de infraestruturas, sem consulta, sem o seu consentimento livre, prévio e informado ou repartição adequada dos benefícios. A adoção prevista da doutrina do marco temporal, limitaria o reconhecimento das terras ancestrais dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam no dia da promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988. Essa doutrina tem sido usada para anular processos administrativos de demarcação de terras indígenas”.

A Cedaw recomendou ao Estado: “Abster-se de adotar qualquer legislação para promulgar a doutrina do marco temporal e rejeitá-la na jurisprudência dos tribunais competentes, aumentar a conscientização pública sobre seus efeitos adversos sobre as mulheres e meninas indígenas e quilombolas e garantir a promoção e proteção de seus direitos, em particular no que diz respeito à demarcação de seus territórios ancestrais sem quaisquer restrições temporais”.

Os tratados monitorados por esses comitês são obrigatórios em toda jurisdição nacional e as recomendações representam a intepretação mais apurada e atualizada desses tratados. O Estado brasileiro, ao compor uma delegação governamental e submeter-se às respectivas revisões, também obriga-se a dar o cumprimento interno desses tratados. Infelizmente, nem na tramitação da Lei – nem no litígio interno – o controle de convencionalidade é minimamente exercido, o que leva a uma situação de insegurança jurídica, em prejuízo principalmente dos vários povos indígenas no Brasil.

A ilegalidade do marco temporal não se limita a uma mera abstração jurídica, mas tem efeitos práticos drásticos. Enquanto os processos de demarcações no Brasil tramitam lentamente, a violência contra os povos indígenas não arrefeceu, mesmo após a eleição do presidente Lula, que vetou o dispositivo da lei que incorpora o princípio do marco temporal.

Paulo Lugon é jurista, educador e assessor internacional da Comissão Arns

Assista o pronunciamento de Maria Hermínia Tavares de Almeida na ONU