"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Mulheres em situação de rua na Cedaw – um hiperinferno de direitos

Paulo Lugon Arantes 25 Abr 2024, 17:47 Alberto_ César_ Araújo Foto: Alberto Cesar Araújo / Fotógrafos pela Democracia

Na cultura ocidental, o Inferno, primeira parte da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, retrataria as cenas mais dramáticas da existência humana. Tenho minhas dúvidas de que Dante tenha ido um degrau mais abaixo e conversado com as mulheres em situação de rua do Brasil. Possivelmente, Caronte, ao remar com Dante naquele lugar infeliz, tenha omitido sobre lugar ainda pior, no receio de que o escritor não aguentasse o baque ao testemunhar tamanha desgraça. Ao mesmo tempo, por não terem sido grafadas pela pena de Dante, essas mulheres, esquecidas, ainda queimam em um fogo eterno sem porta ou passagem para o purgatório e o céu, pagando por crimes que não cometeram, massacradas por um sistema misógino, racista, que foi ainda mais cruel durante a pandemia da Covid-19, superlotando as ruas do Brasil, em um contexto de austeridade fiscal, negacionismo da vacina e higienismo das nossas grandes metrópoles. Dom Paulo Evaristo, de rara sabedoria, soube, sim, enxergar as populações mais esquecidas e, dizendo a verdade ao poder, colocá-las no centro da agenda social e política. Padre Júlio Lancelotti, sem distinção de religião ou de qualquer natureza, tem sua vida ameaçada pelo simples ato de distribuir comida a quem tem fome nas ruas e falar sobre essas mulheres.

Com toda certeza, o povo da rua tem a chave do cadeado que abre esse portão de ferro e conhece os labirintos tortuosos para tirar essas mulheres desse locus insuficientemente representado pelo inferno, onde elas (ainda) habitam. Laroyê, levem-nas ao Aiyê; aceitem o nosso Padê!

E, sim, há ainda discriminação de gênero nesse lugar infeliz. Em situação de rua, as mulheres têm seus direitos ainda mais negados que os homens. Nesse lugar, invisível e tão perto de nós, se nosso GPS marcasse também o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do local, na mesma rua sairia de índice de país escandinavo ao índice mais baixo do planeta, lógico, passando antes por um IDH menos pior, o dos homens em situação de rua. Podemos dizer que esse lugar é, sem dúvida, um hiperinferno de direitos.

Mas que sublugar é esse? Só quem pode descrevê-lo é uma de suas moradoras, que nos explica: “A mulher que mora na rua precisa escolher seu estuprador, seu agressor, que vai defendê-la de outros agressores e estupradores”. Essa casa, sem teto, sem nada, onde vivem essas mulheres, não é nada engraçada. Eu, homem, branco, vivendo na Europa, só a conheço de nome. Mas me esforço para compreender, dentro do meu lugar de fala. Preciso de muita humildade, abertura e coragem.

É nesse contexto que a Comissão Arns, em parceria com o Movimento Nacional População de Rua, o Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua, e o Movimento Estadual da População em Situação de Rua em São Paulo, apresentamos ao Comitê contra a Discriminação contra a Mulher (CEDAW) um relatório sobre os direitos das mulheres em situação de rua. O trabalho foi realizando dentro da vasta gama de atuação da Comissão Arns – desde as ruas das cidades até as instituições multilaterais da ONU e gabinetes do poder em Brasília. Vamos de mãos dadas com nossas parceiras.

O Conteúdo do Relatório Apresentado

O relatório conjunto apresentado ao Comitê CEDAW demonstra de que modo, nesse território, vários artigos da Convenção são violados.

Número crescente de mulheres nas ruas durante e após a pandemia

No contexto dos Artigos 6, 12 e 14 (b) e 16.1 da CEDAW, o relatório demonstra o expressivo número de mulheres, em particular mulheres negras, jogadas às ruas das cidades no país, principalmente durante a pandemia, em 2020. A falta de dados coordenados e específicos deixa ainda um manto de desconhecimento sobre esse fenômeno que não viola apenas o direito à moradia, mas afeta todos os outros direitos.

A dinâmica da vulnerabilidade social e jurídica não pode ser melhor representada do que neste contexto. Durante a última década, onde o número de pessoas em situação de rua decuplou, a população de mulheres nesse contexto aumentou mais que dos homens, principalmente durante a Covid-19, agravada pela EC-95 e a negação das vacinas. Primeira constatação: as mulheres sofreram um impacto negativo maior que os homens. Contudo, após as medidas de reestruturação econômica, mais acesso a seguro social e direitos, o número desproporcional de mulheres nesse contexto persiste. Segunda constatação: em um movimento de reestruturação econômica e de direitos, as mulheres se recuperam desses danos (a chamada resiliência) em uma velocidade menor que os homens em situações equiparáveis, permanecendo invisíveis em políticas habitacionais, de capacitação, de segurança social e de participação política.

Falta de dados específicos e perspectiva de gênero nas políticas em vigor

Em relação ao Artigo 2 da CEDAW, não há dados oficiais sobre a população de rua desagregados em gênero, o que dificulta um diagnóstico preciso da magnitude do problema, perpetuando a invisibilidade dessas mulheres em políticas públicas eficazes. O relatório valoriza as políticas já implementadas em favor da população de rua. Contudo, considera que as menções a mulher e gênero nessas normas e manifestadas na prática, embora apontem o caminho, podem ser melhoradas, consolidando uma clara perspectiva de gênero para essas políticas, de acordo com a CEDAW e a Constituição.

Julgados importantes das Altas Cortes consideram a população de rua como um estado inconstitucional das coisas, mas com menções a gênero de maneira apenas declaratória. Fica aqui o chamado para incorporar as recomendações do relatório e as recomendações vindouras do Comitê CEDAW ao arrazoado jurídico, interpretando o estado inconstitucional de coisas em conjunto com o estado inconvencional de hiperviolações que sofrem essas mulheres.

Saúde sexual e reprodutiva das mulheres de rua

A saúde reprodutiva da mulher em contexto de rua, no âmbito do Artigo 12 da CEDAW, e do pouco lembrado caso Alyne da Silva Pimentel (2011), é amplamente negligenciada, como o desconhecimento das etapas e especificidades do ciclo reprodutivo no contexto de rua, acesso aos contraceptivos, atenção ao pré-natal e parto, amamentação, atendimento ao aborto legal, dignidade menstrual, e destituição precoce de bebês frequentemente sem o consentimento das mães.

Violência de gênero contra a mulher no contexto de rua e falta de acesso à justiça

Com relação à Recomendação Geral No. 35, o relatório apresenta condições calamitosas de violência física e moral contra as mulheres em contexto de rua. São relatados resultados de pesquisa no território, como cicatrizes de afundamento de crânio por pauladas de dois homens; 18 pontos no nariz resultado da mordida de um outro homem que não aceitou recusa a uma relação sexual; cicatrizes de queimadura de cigarro e facadas e escoriações por ter sido arrastada no asfalto pelo ex-companheiro.

Os poucos estudos publicados já vêm indicando: apesar das mulheres representarem entre 13% e 15% do total da população de rua no Brasil, elas são as vítimas de 40% dos casos graves de violência perpetrados contra esse contingente, considerando ainda a provável subnotificação. No entanto, o acesso à justiça constitui um obstáculo insuperável. Mulheres ouvidas pela Comissão e parceiras contaram que, ao procurar uma Delegacia de Mulher para registar um incidente de violência, são informadas de que nada pode ser feito, pois não há meios de se instaurar uma medida protetiva, uma vez que essas mulheres não possuem endereço fixo.

A força das mulheres organizadas na luta por seus direitos

Apesar de (ainda) habitarem nesse lugar de hiperviolações, é impressionante ver que são essas mulheres que, majoritariamente, lideram os movimentos das pessoas em situação de rua. Elas formam maioria nas reuniões, nas incidências com as autoridades, atuando na linha de frente, apesar de todos os riscos para elas e familiares que delas dependem. É uma experiência transformadora, que no linguajar dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, chamamos de agentes de mudança. Significa dizer que, a par de serem vítimas de gravíssimas violações, as mulheres líderes dos movimentos das pessoas em situação de rua são imprescindíveis para o Brasil bater as respectivas metas.

A esperança dança na corda bamba de sombrinha, mas aprendemos com elas que o caminho a ser percorrido está se abrindo. Obrigado por mostrar-nos a direção! Dentro da Comissão Arns, quem nos mostrou o caminho foi a formidável Laura Greenhalgh, uma mulher de fibra e sensibilidade que decidiu que enviássemos o relatório ao CEDAW sobre esse tema. Fazendo a pesquisa sobre o direito internacional aplicável, verificamos que há pouquíssimas menções do Comitê CEDAW às mulheres em situação de rua, ficando aqui a sugestão para que elaborem uma Recomendação Geral sobre mulheres nessa condição.

O processo de revisão

O relatório apresentado é parte do processo de revisão periódica do Brasil pelo Comitê, que monitora o cumprimento, pelo país, das obrigações contraídas ao ratificar a Convenção CEDAW, em 2002, uma década após a ratificação dos dois Pactos da ONU, durante nosso processo de redemocratização.

Os relatórios da sociedade civil, como o nosso apresentado, são cotejados pelas membras do Comitê com o relatório estatal que foi entregue durante um período de transição entre o autoritarismo misógino no mais alto nível de governo ao um governo que preza por direitos, ainda que com desafios. A revisão, em verdade, incide sobre as políticas de Estado, em um todo.

A primeira minuta do relatório estatal para este ciclo de revisão foi entregue dezembro de 2021 com dados desatualizados e informações distorcidas, o que levou o novo governo a enviar um adendo este ano, com retificações a atualizações de dados. Sabe-se que cerca de 70 organizações da sociedade civil, brasileiras ou não, submeteram seus relatórios ao Comitê CEDAW.

As recomendações que serão emitidas pelo Comitê, após o diálogo de revisão com a delegação estatal, devem ser lidas em conjunto com a própria Convenção, que é obrigatória em toda jurisdição nacional. As disposições da Convenção dialogam diretamente com o Artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal.

Para que serve a revisão do estado brasileiro ante o comitê cedaw?

O mecanismo de revisão periódica da Convenção CEDAW auxilia na implementação das obrigações contraídas pelo Brasil ao ratificá-la. O documento de recomendações, emitido pelo Comitê CEDAW após a revisão, deve formar parte integrante de todas as políticas de gênero no País, na Federação, Estados Municípios, e pelos 3 Poderes Constituídos.

No jargão corrente, as revisões não são “denúncias” ou “processos internacionais”, mas devem ser levadas com a mesma seriedade pelas autoridades. O litígio internacional de direitos humanos pode ser evitado através da observância dessas recomendações pelas autoridades. Esse litígio pode levar as vítimas a um sofrimento prolongado, por vezes com revitimização, e depende de critérios jurídicos rígidos de admissibilidade, além de serem custosos e contarem com pouca expertise nacional para levar esses casos. Por parte das autoridades, a implementação da CEDAW, apoiada pela respectiva recomendação, racionaliza os custos de litígio e ataca com mais eficácia instâncias de padrões de discriminação.

O Comitê CEDAW explica claramente que as suas recomendações estão em conformidade com as regras do direito internacional, incluindo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ratificada pelo Brasil) e devem ser implementadas de boa fé pelo Brasil, também pelos Estados e municípios, nos três níveis de governo, por força da cláusula federal desses tratados. Há segurança e jurídica suficiente para o uso doméstico dessas recomendações.

Para além do internacionalês e do juridiquês

As recomendações do CEDAW não devem ser vistas com um documento jurídico e inacessível, mas um diagnóstico que deve ser debatido por toda a população, mídias, academia, comunidade artística, sindicatos, empresas, escolas secundárias e os mais diversos atores da sociedade brasileira.

Podcast, rap, peça de teatro, bate-papo na calçada, grupo no Signal, cerimônia na aldeia, oficina de vivência, conversa no barco, ciranda de roda, cordel, banda de congo, carimbó – há várias formas de dialogar com essas recomendações – é com vocês.

Paulo Lugon Arantes é assessor internacional da Comissão Arns. É doutor em direito internacional pela Katholieke Universiteit Leuven e mestre em proteção internacional em direitos humanos pela Utrecht Universiiteit. É jurista, educador e parecerista.