"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

O racismo estrutural e a desigualdade na Justiça

Paulo Sérgio Pinheiro e André Alcântara 16 Abr 2021, 16:13 thiago-acervo-pessoal.webp

Na manhã de quinta-feira, 8 de abril de 2021, o jovem negro Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20 anos, com comprovado retardo mental, andava a pé pela rua. Ia comprar pão e leite para a família. Estava a 300 metros de sua casa, no distrito de Iguatemi, Zona Leste de São Paulo, quando foi atingido na boca por um disparo feito pelo cabo PM Denis Augusto Amita Soares, que estava à paisana e de folga. Essa é uma história comum no inventário da letalidade policial, envolvendo agentes fora de horário de serviço.

Toda a produção de provas, inclusive as declarações de quem presenciou o disparo, restringe-se à versão do cabo que inicialmente declarou ter atirado em Thiago porque ele teria tentado assaltá-lo. Mais tarde, em nova versão, afirmou que o jovem estaria ligado a outro crime, o roubo a um funcionário de uma empresa telefônica, acontecido em local distante dali. Na ocorrência, também acusava o jovem Fernando H. Andrade da Silva, 27 anos, que teria agido na companhia de Thiago.

Apesar das contradições e do uso desproporcional da força, o delegado Washington Alves Alencar, do 49º Distrito Policial de São Matheus, entendeu estar caracterizada a legítima defesa do policial. Desse modo, desconsiderou todas as técnicas investigativas, como a busca de câmeras, a procura por testemunhas no local movimentado e nos estabelecimentos comerciais, os relatos de familiares, a verificação do rastreador do carro furtado e a confrontação entre as versões dos acusados e do acusador.

A família confirmou que Thiago não estava armado e possui testemunhas que não foram ouvidas oficialmente. Pergunta-se, portanto, quem providenciou o conhecido “kit flagrante”, contendo uma arma para acusar Thiago. Consta no Boletim de Ocorrência que o roubo foi às 9h35, no Itaim Paulista, e a comunicação para o delegado foi feita mais de 5 horas depois, às 15h01. Durante esse tempo, as provas e os acusados ficaram sujeitos a todo tipo de influência e modificação pelos policiais.

Em uma explícita violação do direito de ampla defesa, inicialmente foi apresentada à única testemunha – a vítima do roubo – apenas uma opção de imagem para reconhecimento do criminoso: a foto de Thiago. E a vítima não o identificou como o autor do crime. Mostrar à vítima uma única foto, a do acusado, teria talvez o intuito de induzi-la a denunciar qualquer jovem negro que estivesse naquelas condições?

Sem audiência de custódia e com base unicamente no deficiente inquérito policial, o promotor de Justiça descumpriu seu papel de fiscal externo da atuação policial e em defesa da legalidade, afirmando que “os fatos são gravíssimos e demonstram a periculosidade dos indiciados, que foram detidos logo depois do roubo com emprego de arma de fogo, na posse das ferramentas e da arma de fogo, em situação de fuga.”

A juíza Tania da Silva Amorim Fiuza, que deveria primar pelas garantias do acusado, carimbou a tese do promotor de Justiça e determinou a prisão preventiva de Thiago, sob acusação de roubo e porte ilegal de arma, crimes de “acentuada gravidade e periculosidade”. Assim, promoveu a antecipação da sentença, sem o devido processo legal, sem o contraditório e sem a ampla defesa, apesar do acusado ser réu primário, ter residência fixa, ser deficiente mental e estar internado em um hospital tentando sobreviver aos ferimentos causados por um tiro. As violações de direitos nesse caso continuaram inclusive no hospital, quando a escolta da polícia militar barrou a mãe de Thiago, apesar de haver uma autorização judicial para a visita.

O outro acusado, Fernando Silva, também é negro, primário, e tem residência fixa no bairro. Pai e responsável por uma criança, foi mantido preso depois de ter sido reconhecido por foto pela vítima. O Sistema de Justiça, até o momento, isentou o policial de qualquer acusação ou apuração correcional. As palavras dos policiais militares prevaleceram, tanto para o promotor, quanto para a juíza, sobre o depoimento das vítimas, e apesar das visíveis lacunas do inquérito policial.

Mais uma vez, fica patente que jovens alvos de acusações infundadas, dependendo do local de moradia e da cor da pele, sem defesa imediata e sem testemunhas, tendem a ser ignorados e serão julgados e condenados. Caso fossem brancos, todos os atenuantes a seu favor teriam sido levados em conta e, se condenados, receberiam, pelos mesmos crimes, penas mais leves do que réus negros.

Foto: acervo pessoal