O Supremo, os direitos e as celebrações religiosas presenciais
8 Abr 2021, 14:53O voto dado pelo mais novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), liberando missas, cultos e celebrações religiosas coletivas em tempos de pandemia, é mais uma comprovação do que já era perceptível há tempos: o abastardamento das instituições de controle do país.
Essa tem sido uma das diretrizes do atual governo. Desde seus primeiros dias, ele age de modo coerente, indicando para cargos estratégicos quem carece de currículo, mas aceita tomar tubaína e cumprir missão – qualquer que seja ela. Basta ver o que está ocorrendo no Ministério Público Federal, nos tribunais superiores e no próprio Supremo: a cada vaga que é aberta, assistimos a um cortejo de candidatos rastejando.
Em sua maioria, são figuras medíocres e capazes de colocarem ambições pessoais e interesses espúrios à frente do bem comum. Nesse sentido, a lógica presidencial é explícita: quando o chefe do Executivo anuncia que só escolherá quem estiver “alinhado”, ou seja, a quem se curvar à sua vontade, ele desmoraliza de saída quem aceitar participar dessa competição. Com isso, os “vencedores” humilham-se ao demonstrar que são mais servis do que seus adversários. Assim, o nome escolhido ingressa num grupo cujo papel é evitar que os órgãos de controle exerçam suas atribuições constitucionais.
No caso do Supremo, isso é ainda mais grave, uma vez que, com a redemocratização, a corte deixou de ter o papel subalterno que exercia nos tempos da ditadura e passou exercer o monopólio da arbitragem política no país. Quando um comandante militar fez pelo Twitter uma ameaçada disfarçada às vésperas do julgamento de uma ação contra um ex-presidente da República, em 2018, no fundo ele estava reconhecendo e legitimando esse monopólio.
Infelizmente, essa é uma das marcas da hipocrisia de Bolsonaro e de quem o cerca: o uso contraditório da liberdade de expressão e do direito de crítica com o objetivo de ameaçar as instituições democráticas e o império da lei. A presença em uma corte suprema de quem chega a ela por meio das regras do jogo com a missão de destruí-las é apenas mais um sinal dessa hipocrisia.
Como também é outro sinal o fato de que as pessoas que se candidatam a essa tarefa são marcadas por uma formação primária e uma visão de mundo estreita, como se viu no voto do mais novo ministro do Supremo em favor da abertura de templos e da liberação de celebrações religiosas presenciais durante a pandemia. Ele desprezou não só a ordem legal, mas todas as recomendações dos especialistas em saúde pública. Em termos weberianos, pecou duplamente – em termos de racionalidade formal, convertendo seu voto numa algaravia jurídica, e de racionalidade substantiva, encarando a pandemia como fosse uma fatalidade divina.
Encarregado de aplicar leis, de saída relevou que a entidade autora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – um grupo de operadores jurídicos soi disant evangélico e conservador – não tinha prerrogativa constitucional para tanto. Na linguagem dos processualistas, o ministro conheceu de recurso que, pela Constituição, não poderia ser aceito. Em segundo lugar, foi contraditório.
Afinal, há dois meses ele participou de um julgamento em que, por unanimidade, o Supremo entendeu que não podem impetrar ações diretas de inconstitucionalidade entidades que não preenchem os requisitos estabelecidos pela Carta Magna. Em terceiro lugar, desprezou um dos princípios básicos do federalismo, que é o reconhecimento de que União, Estados e municípios têm competência concorrente em matéria de saúde pública.
Em quarto lugar, ignorando o que é aprendido nas aulas de introdução ao direito e de filosofia do direito, sobrepôs a liberdade culto aos direitos à vida e à saúde pública, sob a justificativa de que, em tempos pandêmicos, as pessoas precisam de conforto religioso.
Todavia, que conforto é esse, se as pessoas que o buscarão são, justamente, aquelas que se contaminarão e, consequentemente, poderão ter sua vida ameaçada por causa da presença massiva em antigos cinemas e lojas comerciais convertidos em templos?
Neste aspecto, particularmente, o mais novo ministro do Supremo deu a medida do risco que a sociedade corre decorrente de seu despreparo para o cargo. Se por um lado existe a liberdade de sair de casa, flanar por espaços públicos e participar de celebrações religiosas presenciais, por outro isso não implica a liberdade para infectar, para contaminar. Ou seja, há um sentido de responsabilidade maior que limita a própria liberdade de locomoção e de celebração religiosa, como forma de defender o interesse geral – no caso, em deter o avanço da pandemia.
Também deixa de lado o fato de que, para as doutrinas mais importantes da filosofia do direito contemporânea, com John Rawls, Charles Taylor, Michael Sandel, Michael Walzer e Alasdair Macintyre, não se pode falar em liberdade enquanto as condições substantivas mínimas para seu exercício estiverem minadas por desigualdades sociais e econômicas. Desigualdades essas cuja superação só pode ser obtida por meio de ações do poder público com o objetivo de criar fontes compensatórias de emprego, de corrigir, por meios fiscais, formas abusivas de consumo e de adotar programas eficientes de educação e imunização.
Mostra, ainda, seu desconhecimento de noções elementares de Teoria do Estado, no sentido de que, se o poder público tem a obrigação de justificar eventuais restrições de liberdades apontando sua utilidade como medida sanitária, os cidadãos que defendem o “direito de trabalhar” e o “direito de rezar” presencialmente também têm de demonstrar que suas aspirações são compatíveis com o objetivo geral de conter a pandemia.
Para estes e para seu inspirador, o presidente da República, não há liberdade, mas mero arbítrio, caso o exercício de suas vontades reduza os demais à impotência de estarem submetidos a uma ampliação do contágio, exponenciando o risco sanitário que a todos afeta, ainda que em diferentes graus.
Ao desprezar em seu voto esses cuidados mínimos e ao deixar claro sua monumental ignorância jurídica, o mais novo ministro do Supremo aprofundou o caminho para que o termo “liberdade” perca sentido em dias bolsonaristas, na medida em que ele é cada vez mais aplicável a qualquer coisa – inclusive como pretexto para governos insensíveis à condição humana que invocam a “liberdade” para justificar o direito que a população tem de não se vacinar e de participar de celebrações religiosas presenciais.
José Eduardo Faria é professor titular da Universidade de São Paulo, chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Foi um dos ganhadores do Prêmio Jabuti na área de direito, em 2012. É autor de "A liberdade de expressão e as novas mídias e de Justiça, Corrupção e Moralidade", publicado em 2019 e 2020, respectivamente, pela Editora Perspectiva.
Artigo originalmente publicado no portal Jota Poder
Foto: Ministro Kassio Nunes Marques / Fellipe Sampaio /SCO/STF