"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Os 60 anos do golpe de 1964 e a democracia hoje no Brasil

25 Abr 2024, 18:00 4 Imagem: Cyra Moreira

Hoje, 25 de abril, a maioria dos portugueses comemora o cinqüentenário da Revolução dos Cravos e nós, brasileiros, registramos os 60 anos do nosso tenebroso 1º de abril de 1964. Um contraste doloroso.

No Brasil, os tanques tomaram as ruas para derrubar o governo democrático de João Goulart e das lutas pelas Reformas de Base e do golpe bem-sucedido se instala a ditadura militar por 21 anos, no estilo fascistóide do terrorismo do Estado – com tudo que isso significa de perseguições e prisões, tortura, assassinatos, censura, abolição dos direitos constitucionais e das eleições livres. E esse horror brasileiro ainda influenciaria as ditaduras que devastaram o Cone Sul, de nossos hermanos chilenos, argentinos e uruguaios.

Em Portugal, em abril de 1974, os cravos enfeitaram os fuzis dos jovens capitães e foi derrubada a longa ditadura de 48 anos do presidente fascista Antonio Salazar. Foi bonita a festa, pá: alvorada da liberdade, com o cheirinho de alecrim pedido e cantado por nosso Chico Buarque. A democracia que se instaura vai criando novos direitos para trabalhadores e camponeses, são libertados os numerosos presos políticos, e a justiça, a educação e a cultura entram no ritmo da civilidade contemporânea.

De comum entre as efemérides dos dois lados do oceano Atlântico, um ponto crucial: o governo dos Estados Unidos apoiou tanto a ditadura salazarista quanto a ditadura militar brasileira.

No Brasil, ainda hoje vivemos na busca pelo pleno direito à memória e à verdade sobre a ditadura, os mortos e desaparecidos – aí incluídos indígenas e quilombolas – sobre as ossadas clandestinas, sobre a anistia que beneficiou os torturadores... Dentre os bravos resistentes, só da USP a ditadura matou 47 pessoas e perseguiu mais de setecentas. Foram demitidos professores ilustres, como nosso mestre Florestan Fernandes. A extrema violência atingiu estudantes e professores como narrado no Livro Branco da USP e também no Brasil Nunca Mais. Faço aqui uma singela homenagem à memória de duas jovens da USP, Heleny Guariba e Ana Rosa Kucinski, assassinadas pela repressão militar.

E um ano antes da Revolução dos Cravos, para citar um único exemplo, o estudante do quarto ano de Geologia desta casa, Alexandre Vannucchi Leme, 22 anos, foi assassinado sob tortura no DOI-CODI.

Ele só disse o seu nome.

É vasta a bibliografia sobre a ditadura militar no Brasil. E hoje, aos 60 anos do golpe, seu espectro é lembrado com tudo o que ocorreu depois do novo golpe que derrubou a digna presidente Dilma Rousseff e instalou o vice, Michel Temer, o presidente das piores reformas neoliberais. Em 2018, com a absurda e ilegal negação da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, abriu-se o caminho para a vitória eleitoral do ex-militar que havia votado no impeachment em homenagem ao torturador Brilhante Ustra, por ele considerado herói da pátria.

Não pretendo me alongar sobre o governo Bolsonaro, mas creio ser possível afirmar sua filiação sinistra à linha da ditadura iniciada em 1964, apesar de ter sido eleito. Pretendo destacar um aspecto, comum aos dois períodos, e que considero especialmente importante para nós, da Educação: o poder das campanhas com mensagens que manipulam o medo, os preconceitos, o ressentimento, a sensibilidade religiosa e os valores tradicionais da família. Os discursos de ódio e da mentira, na imprensa, no rádio e na TV, no começo dos anos 1960 e durante a ditadura militar, seriam copiados na campanha e no governo Bolsonaro, com o uso da desinformação multiplicada – as tais fake news, notícias falsas até no nome – e com a novidade da internet e das redes ditas sociais. Em ambos os casos, a presença dos ideólogos da extrema direita, típicos do chamado populismo autoritário e da negação do Estado de Direito, sempre em nome de Deus, da família e do amor à pátria. A afinidade com o integralismo dos anos 1930 não é mera coincidência.

Voltamos, então, às vésperas do golpe de 1964, com a feroz campanha da direita parlamentar que, nos conhecidos moldes fascistas, manipulava a mentira com uma verdadeira retórica do medo, do ódio e das ameaças. Desde a renúncia de Jânio Quadros, era denunciada a continuidade do que parte importante da elite endinheirada abominava na política brasileira: o getulismo redivivo. O “fantasma popular”, tão temido na década de 1950 com Getúlio Vargas, parecia ressurgir em carne e osso com João Goulart, oriundo do trabalhismo gaúcho.

Vejamos o parentesco dessa campanha que levou ao golpe de 64 com a campanha e o governo de Jair Bolsonaro.

Pela leitura dos discursos parlamentares e dos editorais da chamada “grande imprensa”, além dos púlpitos do catolicismo mais conservador e reacionário, no pré- golpe 64 percebe-se a linguagem radical alarmista com impacto direto tanto sobre a fragilidade das classes médias quanto sobre o temor das elites. Os termos discursivos tinham conteúdos afetivos e morais – como o “desregramento dos costumes”, a “dissolução da família” – ou economicamente ameaçadores, como “proletarização da sociedade”, “confisco da propriedade privada” etc. Explorava-se, acima de tudo, a pretensa associação entre duas “calamidades”: além do getulismo, o suposto comunismo, que estaria na origem das lutas por reformas sociais (sobretudo a Reforma Agrária) e na invenção de uma “república sindicalista”.

As campanhas da oposição misturavam denúncias contra a inflação e a corrupção com a projeção dos horrores da “comunização” do país. Vieram as senhoras “marchadeiras”, de rosário nas mãos, e o mantra “a família que reza unida, permanece unida” nas “Marchas das Famílias com Deus pela Liberdade “... É claro que essa retórica não foi responsável pelo êxito do golpe de 64. Mas é inegável que contribuiu como elemento mobilizador e suporte ideológico para a ação vitoriosa dos militares e dos empresários. Cumpre destacar, portanto, que a virulência da propaganda anticomunista e da campanha difamatória contra a pessoa de João Goulart foi decisiva para convencer as classes médias a saírem às ruas e exigirem a queda do governo.

É claro, também, que as classes médias não teriam força e autonomia para o movimento golpista. Por trás das campanhas moralistas e aterrorizadoras estavam, além dos militares, as verdadeiras “classes dominantes” (o grande capital, o latifúndio, a grande imprensa, a burocracia) que, com rara eficiência, cultivavam o medo e o ressentimento do homem comum. E seus parlamentares no Congresso representavam - isso mesmo, “representavam”, no sentido teatral também – a farsa toda. A defesa dos interesses mais sólidos e exclusivos era “representada” como a defesa da pátria, da família, da religião. Da civilização ocidental e cristã, do “mundo livre”.

(Corte rápido para o governo Bolsonaro e o mantra “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.)

No governo de João Goulart a direita parlamentar transformou o Congresso em palco de conflitos que, dissimulando vultosos interesses econômicos, eram apresentados como batalhas ideológicas sob as bênçãos da Igreja e da doutrina de Segurança Nacional. Da Igreja católica, então a mais difundida. Direita comprovadamente financiada por instituições nacionais e estrangeiras. Eram divulgadas teses sobre uma necessária “guerra revolucionária”, arcabouço ideológico do que até hoje é, para a atual extrema direita, a “Revolução de 1964”. Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo chegou a escrever pedindo a intervenção norte-americana para impedir que o Brasil se convertesse “em outro bastião comunista, como Cuba”.

É compreensível, portanto, que aquela encenação tivesse um efeito devastador. Conseguia transformar o medo tradicional em ódio ao inimigo – sempre “ateu e solerte” – aquele que iria comunizar o país, acabar com a família, proibir a religião e espoliar a propriedade individual, “destruindo as liberdades”.

(Corte para as campanhas da extrema direita hoje e que, desde a campanha de 2018, condenam os direitos humanos, as questões de gênero e o feminismo, campanhas ancoradas no fundamentalismo religioso neopentecostal e na defesa do neoliberalismo radical do modelo Trump, nos Estados Unidos e Milei na Argentina)

As conseqüências trágicas daquela retórica do medo e do ódio refletiram-se na aceitação passiva e mesmo cúmplice, pela maioria da sociedade, da brutal repressão, física e política, que se abateu sobre os adversários do golpe de 64. Que hoje completa 60 anos, com o peso da responsabilidade por tantas violações de direitos humanos como também pelo sucesso da direita rediviva no governo Bolsonaro, no meio civil e militar, que permanece forte na sociedade, tanto na elite dominante como entre setores populares. E esta extrema direita tentou dar um golpe semelhante ao de 1964 ao se ver eleitoralmente derrotada.

Às vezes dá vontade de lembrar o poeta Drummond: “Oh, abra o vidro de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória”

E o que podemos dizer da política e da democracia hoje, depois da devastação do governo anterior, felizmente seguido pela vitória difícil do atual presidente?

Está em vigor, hoje, o Estado de Direito, tão reclamado na ditadura militar e no último governo; mas nos falta bastante para que possamos falar de um Estado de Direito efetivamente Democrático. Sua construção decorre da dinâmica histórica e da correlação de forças, ou seja, é um processo constante, jurídico, político e social de lutas, derrotas e conquistas.

A democracia contemporânea neste século XXI é definida em relação a dois pontos essenciais: a soberania popular e a garantia dos direitos humanos, justamente ditos fundamentais, a começar pelo direito à vida. Esta breve definição tem a vantagem de agregar democracia política e democracia social. A democracia política instaura as liberdades civis e individuais - com destaque para a liberdade de opinião, associação e religiosa, orientação sexual, igualdade no direito à segurança e à informação e no acesso à justiça - assim como a separação, o equilíbrio e o controle entre os poderes. É o regime da alternância e transparência em eleições livres e periódicas, com pluralismo de opiniões e de partidos. É o regime da legitimidade do dissenso e da competição, desde que de acordo com as regras e com respeito à maioria e aos direitos das minorias.

A democracia social, igualmente importante, consagra a igualdade na busca e na garantia dos direitos socioeconômicos, o mínimo insuprimível para a vida com dignidade, de acordo com a Constituição vigente e os Tratados e Convenções adotados pelo país. É a realização concreta do princípio da igualdade e da solidariedade. Saúde, Educação e acesso à cultura, moradia, segurança alimentar, previdência e seguridade social, lazer...a lista permanece sempre em aberto para novas conquistas.

Nesse sentido, a Constituição brasileira, promulgada em 1988, estabelece como objetivos da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º).

Democracia não é apenas um regime político: é um modo de vida. Vivemos juntos e a democracia – com a exigência de cooperação e respeito entre as partes - é o melhor jeito para enfrentarmos de modo civilizado os conflitos e divergências inerentes a todas as sociedades, com tolerância e abertura ao diálogo.

Isso posto, saudamos o terceiro governo Lula e o que ele significa de compromisso democrático e permanente energia devotada à superação das abissais desigualdades em nosso país que, apesar de tudo, continua a ser cantado como “abençoado por Deus e bonito por natureza”. A serenidade e a coragem deste governo foram cruciais para o enfrentamento e a devida responsabilização do golpe de oito de janeiro em Brasília. Mas sabemos que a vitória eleitoral em outubro de 2022 foi por margem mínima; o ex-presidente foi derrotado, mas o bolsonarismo continua forte em todos os setores e grupos da sociedade. E os esforços da transição democrática e republicana continuam urgentes e necessários.

Creio que podemos destacar os seguintes pontos positivos no atual contexto democrático:

- a recriação gradual de órgãos públicos desativados ou excluídos pelo governo anterior, principalmente na área social como, por exemplo, dos Ministérios de Educação e de Saúde, dos direitos humanos, da mulher, dos indígenas, da reforma agrária, do meio ambiente;

- o Brasil retomou um lugar digno na política internacional;

- o Brasil saiu do famigerado Mapa da Fome;

- tem havido crescimento do emprego e queda da inflação;

- o governo enfrenta a questão indígena, com veto à tese do marco temporal, e as iniciativas contra a grilagem e o garimpo ilegal; o apoio ao trabalho de Marina Silva;

- o encaminhamento, tantas vezes postergado, de uma proposta de reforma tributária;

- a política bem sucedida de “redução de danos” - causados pelo capitalismo predatório - com projetos sociais aprimorados e expandidos, como o Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida; e os projetos novos, como o Acredita, o Pé de Meia, o Desenrola, o Terra da Gente.

No rol dos problemas mais graves que contaminam o governo democrático, hoje, avulta a persistente deterioração da Segurança Pública, com os métodos violentos da Polícia Militar– sobretudo contra os mais vulneráveis, como o povo negro, as mulheres, as pessoas LGBTI+. Exemplos recentes são dados pelas operações da PM na Baixada Santista, nas periferias do Rio de Janeiro e na Bahia, aí inclusive contra povos indígenas. A transição democrática tem se revelado incapaz de impor o devido controle civil sobre as políticas de segurança.

Ficam evidentes as imensas dificuldades para avançarmos no caminho da democracia,

se não conseguirmos mudar essa política de segurança que é mais uma política de violência e morte. Há muito o que fazer, no nível institucional jurídico e político, mas também no campo da educação. Já existem boas propostas de reformulação das escolas militares, assim como da formação das polícias.

Também estamos longe de cumprir aquilo que a própria Constituição afirmou, em 1988: o princípio da soberania popular, a ser exercida através de seus representantes, ou, a grande novidade, diretamente, na forma da lei. Isso significa a urgência em criar e multiplicar as possibilidades de participação popular – que foi tão importante nos dois governos de Lula e de Dilma.

O presidente reconhece que, em quatro anos será impossível reconstruir tudo que foi destruído no governo anterior e ainda cumprir tudo que é necessário para o desenvolvimento econômico, social e sustentável. Mas está firme no compromisso com a realização de três exigências: o firme e seguro crescimento da economia; a estabilidade democrática das instituições e as políticas sociais no combate à pobreza. E sua principal tarefa política, hoje, é atuar e reunir apoios para impedir a volta da extrema direita, que tem muitos recursos e se organiza para as eleições neste ano e as presidenciais em 2026. Há que ter esperança e coragem!

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Esta é uma universidade pública, considerada a melhor do país, entre as 100 melhores do mundo. Defendo a exigência da responsabilidade social da Universidade, responsabilidade crucial em nosso país, cuja história, regada com o sangue de escravizados é até hoje marcada por profundas desigualdades de todo tipo, a começar pelo racismo, herança dos quase 400 anos de escravidão legal. Em outras palavras, e seguindo Paulo Freire, creio que a principal motivação dos professores e alunos deve ser a construção coletiva e constante de uma Universidade emancipatória. E defendo que a USP contribua efetivamente para o debate sobre os projetos, em suas várias áreas, para o desenvolvimento do país.

Mais uma vez valorizo o reconhecimento da relação indissociável entre Democracia, Educação e Direitos Humanos, tema candente neste primeiro quarto do século XXI, com as novas tecnologias da informação e da comunicação, a radical transformação do mundo do trabalho, a emergência das mudanças climáticas, o racismo estrutural, as novas questões de gênero, o fanatismo religioso e o negacionismo científico, as pandemias, as guerras absurdas, a fome, o povo em situação de rua... a lista é longa.

Costumo afirmar: "sou professora, logo... sou otimista".

Antonio Gramsci já dizia que devemos ser céticos no diagnóstico, porém otimistas na ação, na vontade. O educador pessimista é, a meu ver, uma contradição em termos, pois nega a possibilidade de transformação - da transformação de seres, da transformação do mundo. O otimista tem fé e es­perança na ação livre, criadora e emancipadora.

No Brasil, muito especialmente, a docência é um ato constante de fé e de esperança, na nossa infância, na nossa juventude, no futuro. Georges Bernanos afirmava que a febre da juventude - a febre de saúde que sempre vi em meus alunos - é o que garante a temperatura minimamente saudável da humanidade. Sem ela o mundo estaria irremediavelmente doente.

Em seu célebre discurso sobre A Política como Vocação Max Weber enfatizava: "a política consiste num esforço tenaz e enérgico para furar tábuas duras de madeira. Exige paixão e precisão. Não se poderia esperar o possível se não houvesse confiança no impossível. Se não houvesse a força da alma para ultrapassar o naufrágio das esperanças". Poderíamos dizer o mesmo da educação.

Portanto, para a tarefa educacional que nos envolve, é preciso superar o que pode persistir de frustração, de desencanto, da tentação da inércia diante de tantos obstáculos e desafios. É a esperança, alimentada a cada dia, que nos permite acreditar e participar da luta daqueles que fazem da educação um ideal. Daqueles que ainda acreditam que saberemos construir uma nação fundada naqueles ideais maiores, o respeito aos direitos humanos de todos, à liberdade, à igualdade na dignidade, à solidariedade, à verdade e à ciência. É preciso amar a nossa terra, acreditar e lutar para que o Brasil seja, enfim, uma nação justa e inclusiva, digna dos milhões de homens e mulheres que constroem a sua riqueza - e dela continuam excluídos.

Alexandre Vannucchi Leme, desde 1976 é o nome do Diretório Central dos Estudantes de nossa USP. Em 2014 o Estado brasileiro retificou sua certidão de óbito, esclarecendo que morreu por “lesões provocadas por tortura”. Neste último dezembro o Instituto de Geologia concedeu-lhe um diploma simbólico.

Ele só disse o seu nome. E nos repetiremos sempre:

ALEXANDRE VANNUCCHI LEME, PRESENTE !