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Quase seis décadas vividas neste território livre que é a universidade

25 Mar 2024, 10:58 MH emerita Foto: Divulgação

Discurso de Maria Hermínia Tavares de Almeida na cerimônia em que recebeu o título de professora emérita da USP

Hoje é um daqueles dias muito raros em que sonho e realidade se confundem num mesmo sentimento de alegria plena. Entre o longo período de formação e os 41 anos como professora foram quase seis décadas vividas neste território livre que é a universidade. Treze anos na Unicamp, a maior parte tempo aqui, na nossa USP, e em seus prolongamentos extramuros: o Idesp e, especialmente, o Cebrap.

Assim, ter meu trabalho reconhecido pelos colegas é uma felicidade difícil de descrever e impossível de retribuir. Por ela agradeço agora:

Ao departamento de Ciência Política na pessoa de seu chefe (e amigo), Rafael Duarte Villa, aos amigos e amigas que aí tenho e aos colegas com os quais nunca convivi, mas assim mesmo, resolveram me homenagear. A dívida é tanto maior porque sei como o departamento tem sido econômico na indicação de seus docentes eméritos.

A nosso diretor Paulo Martins e à Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, minha casa na universidade. Ao me fazer emérita foi de uma generosidade que me faltou em muitos momentos de minha relação a ela.

Aos alunos e alunas que, com o tempo, se transformaram em colegas e pessoas amigas: às quais algo ensinei, mas com as quais muito aprendi. São, para mim, fonte de permanente rejuvenescimento intelectual.

`A minha linda família que me provê de afeto incondicional: Os Brandão, os Weis e suas combinações: Dias Weis, Trevisan Weis, Klimke Weis, Dias-Schmolke.

Às amigas e amigos que me proporcionam leveza no dia a dia.

Por último, porque fundamentais, aos professores que me formaram: Celia Galvão Quirino dos Santos, Eunice Ribeiro Durham, Fernando Henrique Cardoso, Gioconda Mussolini, Leoncio Martins Rodrigues, Maria do Carmo Campello de Souza, Ruth Cardoso e meu grande mestre Francisco Correa Weffort.

Não me cabe falar do que fiz. Aliás, nem me preocupei com isso, pois sabia que meu querido amigo Fernando Limongi faria tudo parecer muito mais – e muito mais interessante.

Gostaria de aproveitar essa oportunidade e falar aqui das circunstâncias que cercaram – e em boa medida moldaram – minha carreira acadêmica, minhas escolhas e meus caminhos. Tais circunstâncias se definem em três planos entrecruzados: o da vida política do país; o das transformações da ciência política: dos seus objetos, modelos e formas de pensar, E finalmente, o plano da construção institucional das ciências sociais no sistema acadêmico brasileiro. Vamos a eles.

Numa de suas últimas entrevistas, a socióloga argentina Silvia Sigal, falecida em 2022, contou que, ainda na faculdade, perguntada por que havia decidido estudar sociologia, respondera de bate-pronto ao professor norte-americano Kalman Silvert: “Estudo sociologia para fazer a revolução”. E acrescentou: “De certo, não fiz a revolução, mas para mim e meus colegas o conhecimento estava ligado à ação”.

Da mesma forma, estudante de Ciências Sociais, no acanhado prédio da rua Maria Antônia,de início eu não via a carreira acadêmica como o porto de chegada de minhas inquietações. Queria mudar o país.

As convicções revolucionárias se desfizeram logo, mas não a forte conexão com a política nacional; ela continuou sendo o combustível da minha vida intelectual. Esse nexo existencial foi sem dúvida reforçado pelo fato de minha chegada à maioridade ter coincidido com a crise da república democrática de 1946 que desembocou na vitória do golpe de 1964 e deu partida a vinte anos de autoritarismo.

Ortega y Gasset afirmou, em livro clássico, que as gerações se distinguem por uma sensibilidade própria, “uma sensação radical da vida” que não é apenas individual.

Assim creio que, para mim e para muitos cientistas sociais que haviam chegado à idade adulta um pouco antes ou sob o autoritarismo – ou seja, para minha geração -- a política nunca pôde ser apenas um objeto de interesse intelectual, entre tantos outros. Nunca. Entender o jogo político, as regras que o moldavam e os interesses que o moviam, foi sempre inseparável da experiência mais ampla de viver sob ditadura e do medo que ela precisa infundir para se manter. Experiência de a ela se opor, de aspirar a democracia e participar, de uma forma ou de outra, de sua construção.

Eu diria que três experiências foram marcantes nessa minha história intelectual indissoluvelmente conectada à vida política: o golpe de 1964 e a vitória acachapante do autoritarismo inesperado e inesperadamente modernizante; a experiência trágica da Unidade Popular no Chile e da derrota do sonho do socialismo democrático, que testemunhei ao vivo; e a longa transição do regime ditatorial para a democracia, que desafiou expectativas e propostas sobre como destituir a autocracia.

Essa relação com a política prática esteve sempre atravessada por grandes tensões: entre o compromisso com a isenção e a objetividade possíveis, em nossas ciências tão soft, e as inclinações políticas de cada um; entre a profissionalização acadêmica - que requer método, disciplina e senso dos limites de um saber que, na melhor das hipóteses, lida com probabilidades - e a atuação como intelectual pública, frequentemente chamada a emitir juízos de valor e opinar sobre mais coisas do que conhece.

A relação com a política prática também nos acorrentou ao presente e à agenda pública, duas fontes certas de vieses analíticos e miopia histórica.

Na segunda metade dos anos sessenta, a Maria Antônia -- metonímia que designava a parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras abrigando as ciências sociais, a filosofia e as letras – parecia em perpétua ebulição. Era possível frequentá-la, diariamente e com proveito, sem entrar em sala aula. Mas, o que lá acontecia para quem se dispusesse a fazê-lo com assiduidade era igualmente fascinante.

Nas Ciências Sociais, estava em curso um projeto intelectual ambicioso e inovador, ancorado nas cadeiras de Sociologia I e de Política (cadeiras eram a forma de organização da vida acadêmica que antecedeu os departamentos e trazia no nome o lugar dominante dos professores catedráticos).

Sob a liderança de Florestan Fernandes, na sociologia, e Paula Beiguelman, na política, aquelas cadeiras sediavam um verdadeiro programa de pesquisa que consistia na caracterização do que era específico, único, na formação da sociedade e das instituições políticas brasileiras.

Era uma indagação sobre as bases estruturais da formação do capitalismo e das classes sociais no Brasil e, em consequência, de suas modalidades peculiares de expressão política, muito diversas das observadas na América do Norte ou na Europa Ocidental.

Tratava-se de uma abordagem estruturalista – histórico-estrutural, como se costuma dizer, com certa pompa -- tributária de uma leitura que se queria não-ortodoxa do marxismo e, em clara oposição às teorias da modernização, então em voga. Antecedidos pelos estudos sobre capitalismo e escravidão, vieram depois aqueles sobre a classe operária e o sindicalismo, sobre a formação e atitudes do empresariado industrial ou sobre o populismo, todos mirando a negação da existência de um caminho único de modernização capitalista e de inclusão política, suposto tanto pelas teorias marxistas da revolução burguesa ou como pelas teorias da modernização da sociedade urbano-industrial. A teoria cepalina do desenvolvimento, no marco das relações centro-periferia, propiciou os alicerces conceituais dessa busca do específico.

Tratava-se, pois de uma abordagem de sociologia política que se ocupava das raízes sociais das formas de poder e do peculiar comportamento das classes sociais, neste canto da periferia do mundo capitalista.

No conjunto, esse esforço revisionista abria novas possibilidades para pensar por que a República de 1946 tinha naufragado quase sem reação de parte dos supostos agentes do progresso: trabalhadores e empresários.

Esse projeto de alguma maneira teve continuidade meio fora, meio dentro, das Ciências Sociais da USP, quando a repressão baseada no AI-5 (a qual voltarei mais adiante) expurgou parte de suas lideranças.

Tomou corpo nos estudos sobre a natureza e as bases sociais do regime autoritário, estudos liderados por Fernando Henrique Cardoso, já no Cebrap. Nesse caso, o que se queria era entender o caráter modernizador do novo regime autoritário e como diferentes interesses de grandes segmentos empresariais – privados nacionais, internacionais e estatais – e novos setores médios o sustentavam e, ao mesmo tempo, criavam tensões políticas. Em paralelo, buscava-se compreender como a modernização capitalista manu militari transformava a sociedade enquanto ampliava velhas desigualdades e produzia novas(nos anos 1970, a polêmica sobre a distribuição regressiva da renda foi disso um exemplo).

Esse empreendimento intelectual não se desenvolvia em uma torre de marfim acadêmica, mas ocorria imerso em um cotidiano de medo e insegurança, onde amigos e amigas poderiam desaparecer subitamente, um tira mal disfarçado poderia estar à espreita na esquina ou uma perua C-14 Veraneio chegar à porta de madrugada. Tempo de reuniões às quais se ia com cautela, tempo da leitura do jornal que de repente, em vez de notícias, publicava poemas de Camões ou receitas culinárias, tempo das músicas de duplo sentido, cuja letra censurada sabíamos cantarolar.

O impulso para pensar como se poderia sair desse pesadelo -- e o que viria depois dele -- transformou a ciência política brasileira. Se o desejado era a democracia, o marxismo não fornecia as melhores ferramentas para justificá-la normativamente, para além de considera-la uma estação, na qual se poderia ou não fazer parada, a caminho do socialismo.

No rumo da heterodoxia, ancorada em interpretações de textos fragmentários de Gramsci, que para isso bem serviam, e em debate que chegado principalmente da Itália, cientistas sociais de tradição marxista começaram a falar na democracia como valor universal. Lembro aqui, o texto clássico de Carlos Nelson Coutinho e os muito artigos de Francisco Weffort. Nosso querido Luiz Werneck Vianna, que se foi há pouco tempo, foi importante nesta discussão. Cabe aqui lembrá-lo.

Também do ponto de vista do que aqui ocorria com o regime, a análise das raízes sociais do poder não servia para muito. Era preciso entender o inusitado papel das eleições na transição do autoritarismo para a democracia. E para imaginar como seria sua construção, era necessário dominar o conhecimento sobre o impacto das regras eleitorais, os tipos de sistemas de partidos, as variedades de regimes políticos, as formas de organização dos estados nacionais, as especificidades dos sistemas de governo, o funcionamento dos três poderes, a produção de políticas públicas. Era importante, também, olhar para o lugar ocupado pelo país no sistema internacional.

Além do mais, para compreender as chances de mudança política, cabia tomar em consideração as decisões e cálculos estratégicos dos atores políticos relevantes, tanto os que serviam à ditadura como dos que a ela se opunham.

Dito de outro modo, era necessário focalizar as estratégias dos atores e aas instituições que as possibilitavam e limitavam. Assim, a análise política deixou de ser cativa da sociologia.

Nessa renovação dos estilos de análise, tiveram papel importante os muitos colegas de minha geração que voltavam com diplomas de PHD, obtidos nos Estados Unidos. Eles foram ocupando posições acadêmicas em recém-criados programas de pós-graduação– como o do IUPERJ, no Rio ou do DCP em Minas Gerais. Impossível omitir o papel de Fabio Wanderley Reis, Sergio Abranches e dos saudosos Wanderley Guilherme dos Santos e Olavo Brasil de Lima Jr.

Original e motivada pelos desafios de superar o autoritarismo e estabelecer o sistema democrático, a conversão da ciência política ao institucionalismo nos colocava em sintonia com as mudanças de paradigma que germinavam nos departamentos de ciência política das universidades norte-americanas.

A interação com o que se fazia lá fora foi adensada nas redes estabelecidas pelos jovens doutores e doutoras vindos do exterior, E se tornou continuada, estável, graças à institucionalização das ciências sociais, iniciada ainda sob o regime autoritário.

A institucionalização das ciências sociais brasileiras foi o resultado não intencional – e em boa medida não desejado pelos que a propuseram – da lei da reforma universitária de 1968. E esta, fez parte de um projeto ambicioso de modernização autoritária do país. A intenção era promover a atualização da universidade pública, com a substituição do sistema de cátedras por departamentos e a implantação de um sistema nacional de pós-graduaçãodestinado a formar quadros de alto nível para produzir ciência a tecnologia nacionais, capazes de alavancar vigoroso desenvolvimento econômico.

Aqui em São Paulo, o desenvolvimento da pesquisa científica já contava com o precioso apoio da Fapesp, agência moderna que assegurava recursos ao tempo em que ia estabelecendo padrões de qualidade acadêmica

Nas ciências sociais, essas mudanças foram contemporâneas da repressão a lideranças acadêmicas e estudantis. É de lembrar que, em 1968 esta universidade foi invadida por forças policiais e por elas cercada em 1969, quando 24 lideranças acadêmicas de várias áreas do conhecimento – entre elas o vice-reitor em exercício Helio Lourenço -- foram cassadas com base no AI-5.

(Em 1970, a área de Ciência Política, que mais tarde se transformaria no departamento que hoje me homenageia, ficou reduzida a 2 professores, Francisco Weffort e Oliveiros S. Ferreira).

Coube à minha geração, recém-formada no Brasil ou no exterior, colocar de pé os programas de pós-graduação segundo as novas regras, bem como o sistema de avaliação da Capes, que deveria garantir sua qualidade e dar os incentivos materiais para a busca de excelência.

Muitos de nós alternamos a coordenação de cursos com a participação em comitês de avaliação na Capes, no CNPq, na Fapesp – e mais tarde, nas outras agências de fomento estaduais.

Por certo, as vicissitudes de fazer ciências sociais sob um regime que lhes tinha aversão tornaram mais íngreme o caminho da institucionalização que nunca pôde se dar apenas no interior das universidades públicas.

Para permanecer no país, professores cassados por ato do governo militar tiveram que inventar um centro privado de pesquisa de interesse público e nome anódino: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – o Cebrap.

Na sua esteira, em São Paulo, vieram o Cedec e o Idesp. No Rio, a pós-graduação de excelência germinou do Iuperj, instituição privada que não poderia ser mais pública, no seu projeto de pensar o país com os instrumentos da boa ciência e no treinamento gratuito dos pós-graduados.

A caminho da institucionalização, os cientistas sociais se organizaram como comunidade. Assim, as ciências sociais ganharam espaço na SBPC, que até os anos 1970 era domínio das chamadas ciências duras. Em 1977, os cientistas sociais fundamos nossa grande associação científica – a ANPOCS . Mais adiante, reativamos as associações disciplinares mais antigas: a ABA e a SBS e, finalmente, a ABCP. Nelas, nasceram os grupos temáticos, as revistas científicas e os prêmios que foram erguendo nossas hierarquias de mérito.

Com suas reuniões anuais e a Revista Brasileira de Ciências Sociais, a ANPOCS criou uma comunidade nacional de pesquisadores com forte interação intelectual, intercâmbio acadêmico e critérios mais ou menos consensuais –e sempre, em alguma medida meio arbitrários -- de qualidade acadêmica.

Muitos dos cientistas políticos, antropólogos e sociólogos meus contemporâneos ocuparam postos de direção na ANPOCS e nas associações de cada uma de nossas disciplinas.

As circunstâncias nos fizeram uma geração de construtores de instituições por necessidade, como certa vez lembrou o queridíssimo Wanderley Guilherme dos Santos.

Foi um privilégio participar dessa aventura geracional, a um tempo intelectual e de estruturação da vida acadêmica.

“Que vivas em tempos interessantes” diz a maldição atribuída aos chineses. Os meus foram, sim, interessantíssimos.

Tê-los vivido foi uma sorte, poder falar deles a vocês, hoje, uma grande alegria.

Obrigada.