"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Resistência e emoção na Catedral da Sé

18 Jul 2022, 15:25 Ato-Se_geral-Reproducao-Foro-da-Amazonia-Twitter-1 Ato inter-religioso em defesa dos povos indígenas na Catedral da Sé - Foto: Foro da Amazônia

A Catedral da Sé, no centro de São Paulo, foi novamente palco de um marco na história do país, na manhã do dia 16 de julho. O Ato Inter-religioso em homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips e em defesa da vida dos povos indígenas reuniu religiosos, defensores dos direitos humanos, artistas, movimentos sociais, sindicatos, políticos, população em geral, em defesa da vida, da terra, das águas e florestas, da cultura dos povos indígenas, tradicionais, camponeses e ribeirinhos.

Além daqueles que morreram de forma brutal e cruel em defesa da vida e do ambiente, foram reverenciados também Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Cláudio Hummes, conhecido como “profeta da Amazônia” por seu empenho na defesa socioambiental da região.

Organizado pela Frente Inter-Religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz, em parceria com a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a Comissão Arns, o Instituto Vladimir Herzog e a OAB-SP, o ato lotou a Catedral da Sé. Mais de 1.500 pessoas participaram presencialmente, além das mais de 40 mil que acompanharam pela internet, em transmissão no Brasil, na França e na Suíça.

Beatriz Matos, esposa de Bruno, Alessandra Sampaio, esposa de Dom, lideranças indígenas e integrantes da Frente Inter-Religiosa estiveram presentes. Como participações culturais, apresentaram-se o Coral Indígena Opy Mirim (Jareko takuapu amba e Nhanderu papa obojera yvy vai), Marlui Miranda e Toninho Carrasqueira (Despedida dos Espíritos e Koytchewa yeye), Tati Helene (Canto solo do Padre José de Vieira), Chico César (Beradêro e Deus me proteja) e Daniela Mercury (Canto da Cidade, canção escolhida pelas esposas de Bruno e Dom) e Hino Nacional.

Na entrada da Catedral, o público foi recebido por um painel com fotos de indígenas e defensores do meio ambiente assassinados durante o atual governo, além de Chico Mendes e Dorothy Stang. Ao lado, duas mesas com artesanato indígena.

Durante o ato, foram muitos os momentos de forte emoção: o encontro da viúva de Vladimir Herzog, Clarice, acompanhada por seu filho Ivo, com Beatriz e Alessandra; os vídeos de Bruno e Dom; as rezas indígenas, de religiões de matrizes africanas e judaica; os clamores por democracia, justiça social, pela paz e em favor dos direitos humanos.

clarice

Conduzido pelo Padre José Bizon e por Afonso Moreira Jr., da Federação Espírita do Estado de São Paulo, o ato começou com a apresentação do Coral Indígena Opy Mirim. Na sequência, a liderança indígena Máximo Wassu afirmou: “Vocês que estão aqui, e que valorizam a nossa cultura, levem essa mensagem para aqueles que não têm noção do que é a nossa cultura”. Máximo chamou Alessandra e Bruna fazerem juntos uma oração.

Maria Guarani, em nome de todos os povos indígenas, pediu: “Que parem de exterminar os nossos povos. É muito importante vocês estarem nos ouvindo É uma tristeza o nosso povo estar morrendo pelo nosso território. Chega! O povo indígena vem da terra, sobrevive da terra. Não só pedir justiça, queremos os nossos direitos”. Maria lembrou das aldeias no Mato Grosso do Sul, de Amambai, dos parentes kayowá sendo assassinados a cada dia.

A Ialorixa Omi lade dedicou sua fala a Tebas, seu antepassado escravizado que construiu o centro velho de São Paulo e a Exu. Ela reforçou a importância do reconhecimento aos povos indígenas e aos povos de matriz africana: “Os povos tradicionais de matrizes africanas são cultuadores de uma ancestralidade que preserva a terra”.

Dom Pedro Luiz Stringhini, bispo diocesano de Mogi das Cruzes e Presidente do Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), relembrou o culto inter-religioso em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura militar em 1975. Stringhini também se solidarizou com a família de Marcelo Arruda, assassinado em Foz do Iguaçu, além de ressaltar o desmonte de políticas públicas de preservação do ambiente. “A democracia não vai embora. Haverá eleições e haverá democracia! A segurança vem através dos livros, não das armas”, reiterou.

O pastor pentecostal Eliel Batista afirmou que é necessário “aprender com os indígenas como tornar esse mundo habitável. Os cristãos devem usar as mãos, não para fazer gesto de arma, mas para acolher os necessitados e depois, agir com gestos concretos de justiça”.

Lucia Chermont, da Comunidade Judaica, leu mensagem do Rabino Alexandre Leone: “É nossa responsabilidade coletiva entrelaçar a justiça e a paz” e rezou, em hebraico e em português, El Male Rachamim (Oração pelos falecidos).

Integrante da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Leonel Sá Maia afirmou: “Temos o poder de criar um ambiente como o que estamos vivendo aqui e agora. Juntos, podemos construir bons momentos, de respeito, de edificação e é isso o que precisamos retomar, o motivo interno consciente desse momento histórico. Que possamos a partir deste momento ter a retomada do ímpeto civil”.

Breves biografias de Bruno Pereira e Dom Phillips foram lidas por Claudinei e Tadeu di Pietro. Depois, uma mensagem em vídeo do indígena Beto Marubo, integrante da coordenação da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), convocou a sociedade a refletir sobre a necessidade de que essas mortes não tenham sido em vão. “Até que ponto vamos aturar que pessoas que sonhavam com um meio ambiente sadio, que atuavam em torno de minorias, dos menos favorecidos, tenham um fim tão trágico como meu amigo de mato Bruno e meu amigo Dom? Não devemos aceitar que pessoas como essas sejam vítimas de uma forma tão cruel e achar que isso é um problema regional. Quero convidar vocês a refletir sobre isso, sairmos do nosso ponto de conforto e atuarmos para que a vida de Bruno Pereira e Dom Phillips tenha valido a pena", declarou Marubo.

Pedindo palmas às comunidades indígenas tradicionais, Alessandra, viúva de Dom, destacou a cooperação com as comunidades indígenas como forma de honrar a vida do jornalista e de Bruno. "O que podemos fazer ativamente é conhecer mais sobre a Amazônia, essa riqueza, essa biodiversidade. Só quando se conhece é que se pode proteger e lutar por ela. Queria deixar minha gratidão verdadeira pelas comunidades indígenas tradicionais desse Brasil, que mantêm nossas florestas de pé. A gente tem que se unir a essa luta que é nossa também".

Alessandra ressaltou a persistência, a ética e a esperança de Dom de que a gente realmente poderia mudar situações difíceis, se se estivesse ativamente envolvidos nos movimentos de mudança. "É um convite que eu e Beatriz fazemos a vocês. A gente não tem opção, a gente tem que seguir essa luta pela conservação e respeito aos povos tradicionais, que além de nossa, das nossas famílias, dos nossos amigos, é uma luta de todos nós, brasileiros”, disse.

Para a antropóloga Beatriz Matos, viúva de Bruno, são fundamentais as investigações para esclarecer o crime. "Acho que justiça é a garantia dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, do Vale do Javari e todos os territórios indígenas do país", defendeu. Ela lembrou ainda que, mesmo com a grande repercussão do crime, o clima no Vale do Javari é de insegurança entre indígenas e indigenistas.

Para Beatriz, a força espiritual do marido e do jornalista britânico é o que as move no momento: “Não podemos mais permitir que pessoas tão dedicadas e que lutam tanto para que a vida de todos nós seja melhor tenham esse fim material tão trágico. Mas eu acredito que o espírito deles acompanha a gente aqui e os indígenas na floresta. Muito obrigada aos povos indígenas pela força”.

O Manifesto que consiste no fundamento conceitual do ato foi lido pelo Monge Ryosan, da Comunidade Budista Zen do Brasil, e Jurema Marques de Araújo, da Comunidade Bahá’i do Brasil. O texto convoca a sociedade a dar um basta na violência contra os povos tradicionais e a cobrar o fortalecimento dos órgãos de fiscalização e respeito aos territórios indígenas.

No encerramento do ato, Daniela Mercury cantou uma de suas músicas junto com Beatriz e Alessandra. Depois, com a participação de todos os presentes, conduziu o coro da igreja repleta que entoou o Hino Nacional, em um dos momentos mais emocionantes da manhã.

Daniela Mercury em ato Catedral