Os indígenas podem não ter dinheiro, mas não são pobres. E são hoje guardiões de nosso futuro. - Manifestação da Comissão Arns

Ser solidário é despojar-se a cada dia, como Frei João Xerri

Laura Greenhalgh 5 Jun 2021, 18:23 frei-joao-xerri.jpg

Há um ano e tanto cruzando a pandemia, vivemos um dia após o outro, distantes daqueles que mais admiramos, à espera de que logo chegue um dia de sol, radiante, límpido, propício a todos os abraços e reencontros. Frei João Xerri era um dos amigos que eu contava abraçar quando esse momento chegasse. Só que ele se foi no último domingo, depois de semanas numa UTI de Goiânia, tentando vencer o vírus que já fez meio milhão de mortos neste país. Até então, era um homem forte nos seus 74 anos. Os defensores de direitos humanos, não só no Brasil, perdem um dos seus melhores.  

Nos anos 1990 conheci João Xerri, frade dominicano nascido na ilha de Malta, no Mediterrâneo, ainda sob domínio britânico. O religioso estava radicado no Brasil desde 1974. Não sei precisar o momento do nosso primeiro encontro, o fato é que recolho na memória as reuniões no apartamento paulistano de sua amiga e colaboradora Lília Azevedo, uma tradutora impecável, grande ativista e, também, grande dama. Ambos lideravam o Grupo Solidário São Domingos, que reunia pessoas de diferentes formações, dispostas a apoiar lutas anticolonialistas e movimentos populares. Posso dizer que, como eu, alguns jornalistas aprenderam muito vendo João e Lília se baterem por justiça social, num mundo idealmente sem fronteiras.

Promotor de justiça e paz da ordem dominicana, quantas vezes Frei João nos explicou pacientemente as engrenagens do apartheid na África do Sul? Uma realidade sobre a qual pôde atuar com discrição, mas de forma incisiva, compartilhando informações preciosas sobre aquele regime racial. Como também nos revelou a realidade cruenta do Haiti, país de uma pobreza inaceitável não só para a sua fé cristã, mas do ponto de vista da dignidade humana, no marco civilizatório.

Trabalhamos juntos em duas frentes: Chiapas e Timor Leste. Duas realidades distintas, igualmente complexas, sobre as quais ele nos levou a exercitar a verdadeira solidariedade internacional – começando por não perder de vista o que o outro lado tem a dizer. Em 1995, ao retornar da Conferência Internacional da Mulher promovida pela ONU, na China, comentei com ele o encontro que tive com mexicanas que me falaram do zapatismo como um movimento essencialmente indígena, com forte inflexão na defesa dos direitos das mulheres. Ora, não era o que se noticiava na imprensa. Disse-lhe da minha intenção de conhecer o movimento in loco. “Você vai primeiro. Depois, iremos nós”, reagiu João Xerri. Em questão de dias, tive sinal verde para seguir até San Cristóbal de las Casas, no estado de Chiapas, para de lá sair sacudindo numa jardineira até o mais importante acampamento zapatista, La Realidad.

Era o momento do Diálogo de San Andrés, uma das negociações de paz entre o governo mexicano e aquela guerrilha que se levantou sem armas, com gente de pés descalços e um discurso social fortíssimo. O encontro seria mediado pela sociedade civil, sob o olhar de observadores internacionais e da imprensa. Na bela San Cristóbal, onde o diálogo se deu, tive uma audiência com o bispo de Chiapas, D. Samuel Ruiz (1924-2011), um dos grandes nomes da Teologia da Libertação, que justamente me contou da sua admiração... por João Xerri. De volta ao Brasil, publicado meu relato jornalístico, tudo o que Frei João queria era saber dos totzil, tojolabal, “me fale mais dos indígenas!”. Eles sempre estiveram no centro da sua solidariedade com Chiapas.

Tempo depois, uma notícia no rádio me fez ligar para João Xerri bem cedo, certamente antes das suas orações matinais: agências noticiosas anunciavam que o advogado José Ramos-Horta e o bispo católico Carlos Ximenes Belo, figuras de proa no processo de independência do Timor-Leste, eram os ganhadores do Nobel da Paz daquele 1996. No Grupo Solidário São Domingos, de pessoas maravilhosas, havia todo um ativismo em prol do povo timorense, sufocado pelo regime de Suharto, o ditador da Indonésia. A reação de Frei João com a notícia não poderia ter sido mais característica: alegria genuína, banhada em simplicidade. Os que puderam acompanhar os esforços de João e Lília, pela libertação deste jovem país, sabem o quanto foram tenazes. Faziam costuras invisíveis, tecendo poderosa rede de apoios no Brasil e no exterior.

Frei João Xerri se destacou em várias frentes, portanto, que seus colaboradores e amigos o relembrem. De minha parte, posso falar do que vivi e aprendi a seu lado. Deixa-nos também alguns livros, escritos sozinho ou com sua parceira de lutas, entre eles, Cartas Solidárias (só dele), Cartas da África do Sul – uma experiência do apartheid (com Lília), Cartas SolidáriasTomando Partido num Mundo Globalizado (só dele).  

Seus escritos revelam o sentido profundo da solidariedade entre os povos, este valor que tem faltado em escala planetária no curso da Covid-19 e, de forma dramática, no Brasil, ludibriado a cada dia pelo negacionismo bolsonarista que matou meu amigo. Porque ser solidário é um despojar-se a cada dia – o que era evidente para João Xerri, estivesse ele ao lado de uma personalidade do mundo diplomático ou de um militante do MST. Com olhos atentos no interlocutor, sua escuta se fazia desarmada e sua fala de gringo buscava agregar, entender o outro, não pré-julgar.

Minha rotina puxada nas redações nem sempre facilitou a nossa convivência. Mesmo afastada do Grupo Solidário, de quando em quando nos falávamos. Frei João ocupou cargos importantes na ordem, inclusive em Roma, sofreu um baque com o falecimento de Lília, sua parceira e braço-direito, poderia ter voltado de vez a Malta, para viver perto dos seus. Mas ele continuou a jornada no Brasil, atuando sempre em favor dos que pouco ou nada têm. Estes foram a sua pátria, de fato. O vírus o levou. No cortejo das almas, Frei João já deve estar tramando como mandar alguma solidariedade para cá.

Faça isso. Obrigada, amigo!