"A demarcação das terras indígenas e a proteção de seus povos é tarefa inescapável do Estado brasileiro e exige o compromisso, de boa-fé, de todos os Poderes da República." - Nota Pública da Comissão Arns

Sociedade civil entrega a comitê da ONU relatório sobre tortura no Brasil

Paulo Lugon 17 Abr 2023, 11:04 genivaldo - reproducao Polliciais trancam jovem negro em viatura e jogam gás pimenta - Reprodução

A Comissão Arns apresentou um relatório conjunto para a revisão do Estado brasileiro pelo Comitê contra a Tortura das Nações Unidas. Essa revisão preenche uma lacuna preocupante de quase duas décadas sem uma revisão do Estado brasileiro mais acurada, por um comitê de experts no tema específico.

O relatório leva ao Comitê um panorama dos diversos tipos de violações e de setores mais vulneráveis à tortura. “Ainda que a criminalização da tortura esteja prevista em lei e exista um sistema voltado para fiscalização, monitoramento e punição dos respectivos casos, o que se percebe é que a tortura segue sendo, recorrentemente, utilizada como prática pelas instituições policiais brasileiras”, diz o relatório.

Entre 2019 e julho de 2022, houve pelo menos 44,2 mil denúncias de tortura e maus tratos feitas no momento da detenção relatados em audiência de custódia, o dobro se considerados os quatro anos antecedentes. Segundo estudo da Comissão Pastoral Nacional, em 2022, os relatos de tortura em presídios aumentaram 37% em todo o país, com 369 casos denunciados entre 2021 e 2022 – 52,2% de agressão física; 18,38% de agressão verbal; 1,73% de discriminação em razão da raça/cor, etnia, identidade de gênero ou orientação sexual; 36,32% de tratamento degradante.

Apesar disso, a tortura é invisibilizada no país. A maioria das informações disponíveis sobre casos notificados de tortura é produzida por entidades da sociedade civil ou depende de sua insistente provocação para que sejam divulgados pelo Estado. É cabível ainda destacar que não existem dados indicativos do quantitativo de agentes investigados ou punidos pela prática de tortura, denotando a manutenção de um quadro de impunidade que legitima e estimula a prática da tortura pelas instituições de polícia.

Segundo a Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos, os dados do estado apontam que, somente entre fevereiro e dezembro de 2021, foram identificadas 454 notícias de tortura em audiências de custódia. Também foram instaurados 96 procedimentos administrativos para apuração de ocorrência de tortura envolvendo Policiais Militares entre os anos de 2015 e 2021, com aproximadamente mil policiais investigados anualmente em virtude de diversas ocorrências, com um número insignificante de condenações.

Em Rondônia, o Grupo de Ações Penitenciárias Especiais (GAPE), ao entrar nas unidades, efetua diversas práticas degradantes como a obrigatoriedade de nudez de custodiados, que são obrigados a apanhar itens no chão, deixando com que suas nádegas toquem as partes íntimas de agentes, bem como seus armamentos; lacerações nos rostos de custodiados, acarretando por muitas vezes a perda de sentidos como visão, audição ou, ainda, nos óbitos posteriores às ações do grupo nas unidades de privação.

Em Minas Gerais, o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) faz parte da rotina das unidades prisionais em desvio de função, atuando de modo violento com agressões físicas e verbais, além da prática de “corredor polonês” por agentes de diversas forças de segurança, com relatos de pessoas presas sendo retiradas das celas e obrigadas a beber detergente e urina, pessoas baleadas e com machucados na cabeça.

Temas igualmente preocupantes são levados ao Comitê CAT da ONU. As audiências de custódia, criadas para que o Poder Judiciário se certifique de que a pessoa detida tenha sua integridade pessoal assegurada, foi pouco efetiva, com apenas 7,3% de casos onde houve relato de tortura e maus tratos.

Pesquisa da sociedade civil mostrou que no Estado de São Paulo, entre 2015 e 2016, de 393 casos avaliados, nos quais foram identificados indícios de tortura e maus tratos, 67% eram referentes a pessoas negras. Em apenas 34 dos casos, já na delegacia, houve registro formal da agressão sofrida no auto da prisão. Nos demais casos, houve tentativa de registrar os fatos de modo a isentar agentes de segurança pública de qualquer tipo de violência, ou usando linguagem que tendia a descaracterizar tortura, além de casos em que a vítima optou por não denunciar, apesar de evidente a agressão.

No mesmo estudo, houve uma omissão do Ministério Público em 80% dos relatos. Nos 156 casos nos quais foi possível identificar a motivação da tortura, 53% foram para obter confissão, 36% para castigar, 8% para imputar crime e 3% para discriminar. Ao final da audiência, 72% casos tiveram encaminhamentos para apuração das denúncias.

Apesar de haver uma prática generalizada no Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro praticou apologia ao regime militar de 1964-1984, ordenando a comemoração do dia 31 de março, assim tolerando atrocidades cometidas naquele período de exceção, como a tortura utilizada contra opositores, artistas, crianças e qualquer outra pessoa que o regime identificasse como inimiga.

Tortura e Grupos Vulneráveis

A prática generalizada de tortura no Brasil, segundo o relatório, afeta desproporcionalmente grupos historicamente discriminados. A crise nas comunidades terapêuticas e da “cura gay”, que trata de pessoas por abuso de substâncias, tem-lhes imposto caráter asilar manicomial e segregatório, com locais de difícil acesso, intensificando o isolamento e a incomunicabilidade; dificultando a socialização, com frequente internação involuntária e compulsória, com propostas terapêuticas sem embasamento científico, aplicação de punições e execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições, confinamento, uso de força, violência física e uso abusivo e inadequado de contenção. O relatório ainda denuncia as terapias de reversão de orientação sexual e identidade de gênero, a “cura gay”, proibida no Brasil e internacionalmente.

A brutalidade policial racista ocorrida no caso de Genivaldo de Jesus Santos é multiplicada no país. Há registros de pelo menos outros 24 casos similares. O relatório apresenta dados elucidando que 19% dos homens negros de baixa renda já sofreram agressões físicas em abordagem policial, apenas 5% das pessoas acreditam que a polícia não é racista e 83% acreditam que casos de abordagem policial violenta como a acorrida com George Floyd ocorrem com frequência no país.

Dois em cada três presos é negro no Brasil – 64% da população prisional é negra, enquanto esse grupo compõe 53% da população brasileira. Se cruzarmos o dado geracional, essa distorção é ainda maior: 55% da população prisional é composta por jovens, ao passo que essa categoria representa 21, 5% da população brasileira. Negra, pobre e mulher demarca a posição de vulnerabilidade extrema na sociedade brasileira, com efeitos desproporcionais no contexto da justiça.

As mulheres negras ocupam um lugar de total vulnerabilidade na pirâmide social brasileira. A atual situação social da mulher negra é fruto de raízes históricas, cuja ideologia ainda determina o seu “lugar” e o seu “não lugar”. Entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou 567,4%, ao passo que a média de aumento da população masculina foi de 220% no mesmo período. Temos a quinta maior população de mulheres encarceradas do mundo; 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras, ou seja, duas em cada três mulheres presas são negras. O crescimento abrupto acontece, exatamente, após 2006 e a aprovação da Lei de Drogas (Lei no 11.343, de 2006). O tráfico lidera as tipificações para o encarceramento; 26% da população prisional masculina está presa por tráfico, enquanto, dentre as mulheres, 62% delas estão encarceradas por essa tipificação.

As mulheres familiares de pessoas privadas sofrem na mesma proporção as violações de seus parentes, incluindo quando buscam justiça. A restrição de contato com a família é uma vertente de um sofrimento psíquico imensurável, sendo uma forma de cerceamento do acesso à justiça para pessoas presas e também uma forma de dificultar a atuação das defensoras dos direitos humanos.

O relatório conjunto foi elaborado pela Assessoria Popular Maria Felipa, Associação de Familiares de Presos de Rondônia, Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, Comissão Pastoral Carcerária, Movimento Nacional de Direitos Humanos e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.

O Comitê contra a Tortura é um órgão independente das Nações Unidas, composto de dez experts independentes com a função de avaliar o combate à tortura dos Estados que ratificaram a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes ou o Protocolo Facultativo à Convenção. O Brasil ratificou a Convenção em 1991 e o seu protocolo em 2007. Apesar da longa data de ratificação, o país foi avaliado pelo Comitê apenas uma vez, em 2004, deixando uma preocupante lacuna de proteção.

A revisão do Estado brasileiro acontecerá dias 19 e 20 de abril de 2023, em Genebra, com transmissão ao vivo pela UN TV. A revisão consiste em uma sabatina entre os especialistas e a delegação estatal sobre o cumprimento das obrigações contidas na Convenção. O resultado da sabatina é a adoção de um documento de diagnóstico da situação do combate à tortura, contendo recomendações práticas para o Estado brasileiro implementá-las.